6.5.20

OPINIÃO: Água, energia, telecomunicações: como garantir acesso universal a bens essenciais?

Durante o período de pandemia, são proibidos os cortes de abastecimento de água, eletricidade e comunicações. E a seguir, será que será aceitável que se não aplique o mesmo princípio a quem não pode pagar esses serviços? 
1- A CRISE COVID19 E O ACESSO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS
A crise pandémica que atravessamos tornou ainda mais evidente a importância de determinados serviços públicos (falo do abastecimento de água e saneamento, da energia eléctrica e das telecomunicações) para a vida dos cidadãos em Portugal neste século XXI. De tal maneira que a Assembleia da República aprovou legislação que proíbe aos operadores o corte do fornecimento de qualquer desses serviços por falta de pagamento, durante o período de estado de emergência acrescido de um mês.
Parece-me claro que haverá necessidade de prolongar esse período de tempo (ou adoptar outras medidas), pois chegado o fim desse prazo teremos muitos desempregados, parte dos quais como por exemplo no turismo não sairão dessa situação a curto ou médio prazo, e ainda muitos trabalhadores em regime de lay-off que não terão capacidade financeira para satisfazer os seus compromissos habituais acrescidos do pagamento (ainda que faseado) das importâncias correspondentes às facturas não pagas. O corte do serviço de telecomunicações ou do fornecimento de energia eléctrica impediria até que os estudantes que beneficiam do ensino à distância assegurado pelas suas escolas via internet vissem coartada essa possibilidade. Bem como, no momento em que cerca de 85% dos doentes com COVID19 são tratados em sua casa com o apoio de profissionais de saúde via telefone ou videochamada, impossibilitaria tais contactos.
Ora durante este período de pandemia considera-se, e bem, que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deve deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tem disponibilidade financeira para pagar os seus custos. E,  após este período de tempo, será que será aceitável que se não aplique o mesmo princípio a quem não pode pagar esses serviços? Dever-se-á considerar que existe “um direito” ao fornecimento desses serviços? Se existe tal direito, qual o seu conteúdo, quais os seus limites?
Irei abordar exactamente esta temática centrando o essencial da minha atenção no abastecimento de água, pois é um tema em que desenvolvi mais trabalho de estudo e reflexão, e ainda porque o “direito à água” está já reconhecido pelas Nações Unidas como um direito humano. Relativamente aos outros serviços (energia eléctrica e telecomunicações) será feita no final uma breve abordagem específica, atendendo às suas características e particularidades.
2- A GARANTIA DO DIREITO À ÁGUA
2.1- Sabe-se que a água é essencial à vida e à saúde dos seres humanos. E foi  exactamente por isso que a temática do “direito à água” esteve vários anos em debate no âmbito das Nações Unidas, debate esse que culminou com a aprovação pela Assembleia Geral, em 26/07/2010, de uma Resolução que “declara o direito à água potável e ao saneamento como um direito fundamental para o pleno disfrute da vida e de todos os direitos humanos”. Posteriormente o Conselho dos Direitos do Homem, em 30/09/2010, aprovou por consenso a sua própria Resolução sobre a mesma temática, o que significou que “para a ONU o direito à água e ao saneamento está contido nos tratados relativos aos direitos do homem e por consequência é legalmente obrigatório”.
Recordemos que há no essencial, do ponto de vista político, duas grandes vias de encarar as questões relativas aos serviços de água, com orientações e estratégias distintas. Do lado dos neoliberais considera-se que a água deve ser considerada como uma mercadoria como qualquer outra, e que o mercado será o mecanismo que melhor poderá garantir a repartição óptima dos recursos. No outro lado é reconhecida expressamente a existência dos direitos económicos, sociais e culturais (e portanto do “direito à água”) e considera-se a garantia da efectividade de tais direitos uma responsabilidade de todos. Esta decisão da ONU constitui pois uma vitória desta segunda via.
Parlamento Europeu reconhece a água como direito humano
Mas em que é que consiste o direito à água? Em documento das Nações Unidas de 2002  ("Questions de fond concernant la mise en oeuvre du Pacte International relatif aux droits économiques, sociaux et culturels" - Observation générale nº15 (2002) - "Le droit à l'eau") o “direito à água”, era definido como consistindo “no fornecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um”.
O problema que agora enfrentamos é pois o de garantir o tal “direito à água”. No que respeita ao nosso País, e uma vez que (graças ao enorme esforço de investimento público que nos últimos 30 anos foi feito no sector do saneamento básico) a acessibilidade física às redes de água e saneamento e a qualidade da água estão garantidas na quase totalidade do território, a questão central nos nossos dias é assegurar que o “fornecimento suficiente” de água seja “economicamente acessível” a todos, mesmo àqueles que, durante um período de tempo mais ou menos dilatado, não disponham dos recursos financeiros necessários ao pagamento da respectiva factura.
Convém esclarecer, desde já, que a garantia da efectividade do direito à água não implica necessariamente que seja disponibilizada água gratuita (embora essa seja uma alternativa praticada por exemplo na Flandres), mas sim que esta tenha um custo acessível (por exemplo por recurso à subsidiação cruzada e/ou com a criação de tarifas sociais) e que exista um mecanismo que assegure o pagamento da água potável, durante o período de tempo necessário, àqueles que comprovadamente não possuam capacidade de suportar o seu pagamento.
2.2- Mas passemos a analisar uma questão que alguns colocam, e que poderemos considerar como uma questão prévia: será que a adopção de uma  tal política, que poderá implicar até que durante um certo período de tempo possa haver pessoas que tenham acesso à água sem ter que efectuar o respectivo pagamento, não irá contribuir para situações em que haja desperdícios de água, em prejuízo da adopção de uma política de conservação da água, cada vez mais urgente face à crescente escassez do recurso no nosso País? Examinemos o problema.
E para isso será útil começar por clarificar que a água tem diferentes funções. Conforme refere a Declaração Europeia para uma Nova Cultura da Água há que discernir com clareza as funções da água, distinguindo os seguintes níveis:
a água-vida, em funções de vida, que dizem respeito a direitos humanos individuais (o acesso à água potável, condição de vida e saúde) e colectivos (o direito das comunidades ao território e seus ecossistemas);
a água-cidadania, em funções de serviço público ou de interesse geral, que dizem respeito a direitos sociais, tais como os relacionados com a saúde pública, a coesão social e a equidade;
a água-negócio, em funções de negócios legítimos, que dizem respeito a direitos privados e individuais a melhorar o nível de riqueza e bem estar;
a água-negócio, em funções de negócios ilegítimos, que devem ser combatidos por lei.
Cada uma destas funções respeita a direitos que se encontram em níveis qualitativos diferentes, que implicam prioridades diferenciadas, assim como critérios de gestão claramente distintos.
Quando da concepção de um sistema tarifário para os serviços de abastecimento de água e saneamento é não só perfeitamente legítimo mas indispensável ter em conta a diferente natureza das diversas utilizações da água. A água em “funções de negócios legítimos”, onde na grande maioria das situações tem aliás uma expressão diminuta na estrutura de custos do negócio, deve ser tarifada pelos operadores dos serviços de acordo com critérios que não há razão para se afastarem dos adoptados pelos fornecedores de outros bens ou serviços. Já a tarifação da água utilizada em “funções de vida” (e também, embora noutro grau, em “funções de serviço público e de interesse geral”) não pode deixar de ter em conta a finalidade com que é utilizada e que diz até respeito ao direito à vida dos seres humanos, direito esse que tem de ser garantido independentemente da situação económica das pessoas.
Quando se refere o “direito à água” está-se, pois, a falar de garantir as utilizações domésticas da água em funções de vida, que são apenas uma parcela das utilizações domésticas totais da água. E portanto o receio de que a construção de mecanismos que garantam efectivamente o direito à água prejudique a promoção de uma política de conservação e uso eficiente da água não tem cabimento. Tal política, como é óbvio, não contempla a negação da garantia desses consumos mínimos vitais, que são condição de vida dos seres humanos.
João Bau - Investigador-Coordenador do LNEC (aposentado)
(continua)