No dia em que morria cerca de um brasileiro por minuto pela acção do coronavírus, o presidente do Brasil mostrava a sua boa-disposição, gargalhando nas redes sociais sobre a diferença de tomas entre a Direita e a Esquerda brasileira.
Bolsonaro, o traste encartado que a maioria dos brasileiros escolheu para presidir ao país, repescou a "tubaína", nome dúplice que bem conhece para dar umas risadas sobre os enterrados. Para ele, "quem é de Direita toma cloroquina, quem é de Esquerda, tubaína". E quem é de juízo, como sentenciou o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, "escuta a medicina".
As críticas da associação de refrigerantes não retiram todo o gás às afirmações de Bolsonaro sobre a tubaína, uma bebida tradicional do interior de São Paulo. No pior momento da pandemia, o presidente do Brasil escolheu fazer uma rima com uma expressão que, desde a Idade Média, é associada à crueldade das sevícias e aos abusos criminosos, usada em quartéis como técnica de tortura por afogamento, que consiste em colocar um funil na garganta do torturado, despejando água ininterruptamente.
Não contente com a infelicidade, repetiu-a, reforçando a piada, regressando à risada. Bolsonaro estava feliz com o seu remédio para a malária. Pouco importa se, nessas 24 horas, 1179 brasileiros morreram pela acção do vírus. Inimaginável.
O drama que o Brasil vive é assustador, revoltante e comovente. Mas os brasileiros não estão sozinhos, como se sabe. O que vai na cabeça de Bolsonaro vai no estômago de Trump. Sabemos como acaba. Donald Trump, vendo quase 100 mil americanos a morrer com covid-19 e 39 milhões a perder o emprego em dois meses, só garante que vai deixar de tomar cloroquina porque o medicamento está a acabar.
Ciente da falta de qualquer evidência da sua eficácia e mais do que avisado pela comunidade científica sobre os seus efeitos colaterais, Bolsonaro vai de demissão em demissão, sem substância. Nem Regina Duarte, nesta sua clonagem a Maria-Vieira-em-modo-tropical, se aguentou mais do que dois meses na Secretaria da Cultura do Brasil. Mas ainda a tempo de conseguir revisitar o hino da ditadura militar brasileira, desprezando as pessoas censuradas, torturadas e mortas entre 64 e 85.
"Não era bom quando a gente cantava isso?", perguntava enquanto, como Bolsonaro, gracejava o sorriso. Entretanto, o mesmo Luís Figo que apoiou Sócrates participa numa manifestação do VOX espanhol. Cabeças de animais no relvado. Esta semana, numa extensa investigação jornalística, sabe-se algo mais sobre a trama de ligações da extrema-direita de Ventura aos lóbis evangélicos e ao fascismo luso. O regresso dos mortos-vivos vive a sua época de pleno esplendor nas mãos dos torcionários e revisionistas da História.
Miguel Guedes in “Jornal de Notícias” 22/5/2020