Quanto mais se aprofunda, sob a pandemia, a emergência económica e social, mais importante é discutir a repartição do esforço no combate à crise.
Essa repartição só poderá ser justa se, ao contrário do que aconteceu na última crise, as maiores empresas forem chamadas a contribuir. Por isso a insistência para que os impostos sejam pagos em Portugal, e não na Holanda ou na Irlanda. Por isso a exigência sobre as injeções no Novo Banco, que o Governo mantém apesar de na maior opacidade, sem se conhecerem sequer os resultados da auditoria à forma como os ativos do antigo BES estão a ser geridos. E por isso, também, a indignação com a atribuição de bónus aos seus administradores. Mas, para além destas questões, que dão origem a próximas iniciativas parlamentares do Bloco, há uma outra preocupação, talvez mais urgente, que merece atenção.
Enquanto para muitos setores a suspensão da atividade económica significou paralisação e prejuízo, para outros está a ser sinónimo de lucros inesperados. É o caso do setor segurador que, em muitos casos, manteve a receita dos prémios apesar de os riscos que segura terem desaparecido. Basta pensar nos seguros de responsabilidade civil automóvel quando o tráfego caiu 80%. Mas há outros exemplos, especialmente nos riscos associados às atividades económicas suspensas.
É verdade que o Governo anunciou entretanto a criação de regras excecionais aplicáveis aos contratos de seguro. Mas as medidas anunciadas parecem ficar a meio caminho, e longe de reverterem para os cidadãos estes lucros extraordinários das seguradoras. Por um lado, não foi criado um regime transversal de moratórias. Em vez disso, o Governo propõe um modelo pouco claro que privilegia a negociação individual. Apenas quando não houver acordo, e perante uma falha no pagamento do prémio, é impedida a suspensão da cobertura por um período limitado de tempo. A obrigação do pagamento do prémio, no entanto, mantém-se em moldes ainda não especificados.
Mas o mais grave vem numa segunda medida, que estabelece o direito dos cidadãos requererem à seguradora uma redução do prémio caso caso entendam que o risco se reduziu significativamente. Este método pode ser considerado para seguros específicos associados a certas empresas ou atividades económicas, mas não faz qualquer sentido, por exemplo, para o seguro automóvel.
Se a redução do risco foi imediata e transversal, então a redução dos prémios deveria ser automática e generalizada. A introdução de procedimentos sem sentido é um favor às companhias seguradoras e prejudica sobretudo as pessoas com menos acesso a informação e menor poder negocial - certamente aquelas que mais precisam do dinheiro que lhes está a ser cobrado a mais.
Mariana Mortágua - “Jornal de Notícias” - 12/5/2020