2.3- Voltemos ao tema da construção de um mecanismo de garantia do direito à água que exige, aqui e agora, a resposta a três questões.
Direito à água versus privatização
A primeira será a seguinte: “mas o que é o “fornecimento suficiente” da água para funções de vida? Tenho defendido que para países desenvolvidos como Portugal ele deve ser, no mínimo, de 50 litros per capita e por dia, o valor que a OMS considera garantir as necessidades básicas de higiene e consumo. E que, portanto, um 1º escalão do sistema tarifário que contemple este consumo vital deverá ser de 1,5 m3 por pessoa e por mês.
E a segunda questão será: E o que é o “custo acessível”? Há evidentemente diferentes perspectivas na resposta a tal questão. Deverá entender-se que é um “fornecimento suficiente” a custo zero, como acontece, por exemplo, na região da Flandres, na Bélgica, onde todos os cidadãos têm direito a 15 m3 anuais de água (o tal “consumo vital” anual) fornecida gratuitamente? Solução esta que, do ponto de vista conceptual, tem a vantagem de retirar os consumos vitais da esfera mercantil, remetendo-os para o domínio dos direitos do homem. Ou será um “fornecimento suficiente” com um preço suficientemente baixo mas não nulo, com o estabelecimento concomitante de mecanismos que permitam a resolução de casos em que não seja possível, comprovadamente, o pagamento por parte do cidadão/consumidor (como ocorre, também na Bélgica, mas na região da Valónia e em Bruxelas)?
Em tempos de crise, uma nova abordagem das temáticas da água
E como se podem financiar os mecanismos de solidariedade que permitam garantir o direito à água? Referirei apenas que existem na Europa mecanismos diversos para apoiar os cidadãos impossibilitados de fazer face ao pagamento das facturas de serviços básicos por razões económicas e que visam, por conseguinte, evitar a interrupção da prestação de tais serviços. Uns, como em França, funcionam a nível departamental e com base em transferências do orçamento social, ou seja, são financiados pelos contribuintes. Outros como na Valónia ou em Bruxelas são baseados na introdução, no sistema tarifário dos serviços de água, de uma parcela destinada a um Fundo de Solidariedade, e são portanto suportados pelos consumidores. Outros mecanismos poderiam ser ainda criados, tais como por exemplo o estabelecimento de uma taxa sobre a água mineral engarrafada.
Dos três tipos de mecanismos de financiamento referidos parece-me que o primeiro (verbas do OE ou dos orçamentos das autarquias locais) poderá não ser neste momento a melhor opção em muitos municípios face aos problemas e restrições orçamentais que bem conhecemos. Afigura-se que o recurso aos dois outros mecanismos referidos, se necessário até a um mix deles (ou a um mix que inclua também verbas públicas), poderá ser uma solução. Refiro que se, por exemplo, incluirmos nas tarifas da água facturada pelos operadores uma componente solidária de 0.01 €/m3 obteríamos uma receita anual superior a 5,6 M€ para um Fundo de Solidariedade. E acrescento que se, por exemplo, taxarmos com 0,01€ cada vasilha de água engarrafada (seja qual for a sua capacidade) obteríamos uma receita para o referido Fundo superior a 5,5 M€ anuais. As alternativas referidas não foram apresentadas como propostas mas apenas como simulações, para termos ordens de grandeza de receitas susceptíveis de serem mobilizadas.
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS
3.1- Passados 10 anos do reconhecimento pelas Nações Unidas do “direito à água” como estando incluído nos tratados internacionais relativos aos direitos do homem de que Portugal é signatário, é altura de introduzirmos no nosso ordenamento jurídico o reconhecimento de tal direito e de criarmos um mecanismo de financiamento que garanta a sua efectividade. É por isso que tenho vindo a defender que o BE encare de frente tal desafio, que prepare e apresente em momento adequado uma proposta legislativa e que negoceie a sua aprovação na Assembleia da República.
3.2- Acrescento ainda que, como já apontei, seria útil que para os outros serviços públicos que referi, o de fornecimento de energia eléctrica e o de telecomunicações, muito embora sejam de natureza bem diferente do serviço de abastecimento de água (a água é um bem diferente de todos os outros, essencial para a vida e saúde dos homens), fosse feita uma análise específica para cada um deles, que permitisse definir nomeadamente o que seria o “fornecimento suficiente” que, em Portugal e em 2020, se consideraria que seria necessário e razoável assegurar.
Acresce que o Primeiro Ministro já apontou como objectivo garantir que no próximo ano lectivo todos os estudantes tenham ligação por via informática às suas escolas, o que exige que cada um deles disponha de um computador ou de um tablet, mas também que todos eles disponham em suas casas de energia eléctrica e de ligação à internet. Neste momento e durante um período de tempo que não é possível estimar o acesso à escola pública passa de facto pela disponibilidade de acesso à internet. E, no futuro, é bem possível que, sem prescindir da insubstituível ligação presencial professor/aluno, o recurso às tecnologias da informação seja cada vez mais utilizado pelas escolas, o que será até potenciado pela experiência que estamos a viver.
Também no que respeita à saúde sabemos que actualmente cerca de 85% dos doentes com COVID19 permanecem no seu domicílio apoiados via chamadas telefónicas ou via videochamadas por pessoal especializado dos serviços de saúde. Até para doentes não-COVID o recurso à telemedicina tem vindo a ser utilizado pelo SNS (Serviço Nacional de Saúde) e pelo sector privado. Dizem os especialistas que a telemedicina veio para ficar, não para dispensar a insubstituível ligação presencial médico/doente mas para ocupar um espaço que provavelmente vai crescer com o tempo. Também aqui o acesso à internet e à energia eléctrica são indispensáveis.
Ou seja, já neste momento o pleno acesso a dois pilares no nosso Estado Social, a escola pública e o SNS, exigem não só a disponibilidade de dispositivos como os telefones e os computadores como também o acesso aos serviços de fornecimento de electricidade e de telecomunicações. Duvido que se possam considerar como direitos humanos tais acessos, mas considero que eles são no nosso País nestes tempos de hoje (e no futuro próximo) condições cada vez mais necessárias ao usufruto de serviços, a escola pública e o SNS, que eles sim são garantia de direitos humanos (os direitos à saúde e à educação). Pelo que defendo que sejam estudados com urgência mecanismos de garantia do acesso universal a um “fornecimento suficiente” dos serviços de electricidade e dos serviços de telecomunicações.
Quanto à electricidade a existência de tarifas sociais de aplicação automática (com custos suportados pelos operadores) a cidadãos que beneficiem de determinadas prestações sociais com condição de recurso foi um importante passo em frente. Que faltaria completar com a criação de um mecanismo de financiamento do “fornecimento suficiente” daqueles que durante um determinado período de tempo não têm condições financeiras para suportar total ou parcialmente os custos dos serviços, mesmo com a aplicação das tarifas sociais.
Quanto aos serviços de telecomunicações seria interessante definir um “Pacote mínimo” de serviços de TV+internet+voz e criar uma tarifa social para o seu pagamento pelos utentes, em condições idênticas às vigentes para a electricidade. Esta medida deveria ser de aplicação universal. Em seguida complementar esta medida pela criação de um mecanismo de financiamento para aqueles que não têm condições financeiras para suportar (total ou parcialmente) os custos do serviço, mesmo com a aplicação da tarifa social. Seria oportuno discutir o âmbito de aplicação desta última medida: deveria ser de aplicação universal ou contemplar apenas (o que talvez fosse mais viável e razoável neste momento) aqueles em que o acesso aos serviços referidos fossem cruciais para assegurar o acesso pleno à escola pública e ao SNS (famílias com crianças em idade escolar que interessasse manter a beneficiar do ensino à distância, cidadãos doentes ou em quarentena seguidos pelos serviços de saúde com recurso à telemedicina, idosos vivendo isolados, etc.)?
A proposta que faço não é nada de radicalmente novo na Europa. Pois, por exemplo, o mecanismo de financiamento (através do orçamento social ao nível dos departamentos) que de há muito existia em França, e que referi a propósito do financiamento do direito à água, já abrangia (e para além da água) o pagamento, a cidadãos comprovadamente sem recursos para suportar os respectivos custos, de uma parcela dos consumos de electricidade e de telefone para pessoas idosas.
João Bau é Investigador-Coordenador do LNEC (aposentado)