10.10.24

NISA: A “nova vida” da Olaria Pedrada

Nisa é conhecida por ser terra de bom queijo e pela originalidade do seu artesanato, desde os bordados à olaria pedrada. É terra de artistas que desde tempos imemoriais lhe emprestam, com o seu labor e criatividade, uma imagem de beleza e de prestígio de que a vila se ufana. A olaria pedrada, única no país, tinha no seu início uma função utilitária, como recipientes para guardar, refrescar e transportar a água. Eram famosos o moringue, a bilha de duas bicas, a cantarinha e o asado, entre outros, como famosos eram os oleiros de Nisa que nos anos 50 e 60 demandavam as estações dos caminhos de ferro de toda a região, principalmente no Verão, para vender as suas peças de louça. Na década de 60 havia em Nisa uma dezena de oficinas de oleiro. Funcionavam sazonalmente, tendo cada oficina, em média, cinco ou seis raparigas, dos 11 aos 20 anos. Saíam da escola e iam para as oficinas, pedrar, para fugirem ao campo.Ganhavam à peça, as mais pequenas eram pagas a 3 tostões, as maiores chegavam aos dez tostões e o pote podia render-lhes 25 tostões ou três escudos, conforme. Isto eram preços do princípio da década de 60. A vida modernizou-se, a emigração levou ao abandono das terras e dos campos e a olaria quase se finou. Restaram dois ou três oleiros, já idosos e chegou a temer-se pelo fim desta actividade artesanal. A função utilitária foi dando lugar a uma concepção mais decorativa e artística, mantendo, no geral, a essência dos estilos e desenhos, o que levou a um aumento da procura e das vendas, o que não correspondeu, no entanto, ao aparecimento de novos oleiros, pese embora o esforço da Câmara e de algumas acções de formação financiadas pelo IEFP.
Não há mal que sempre dure e uma das acções de formação acabou por dar alguns frutos, melhor uma pessoa interessada em dedicar-se à arte do barro. Ilda Marques nasceu em Portalegre, tem 51 anos e um percurso profissional no ramo do imobiliário. A pandemia trocou-lhe as voltas e abriu-lhe as portas para dar um novo rumo à sua vida. Retornou à terra, frequentou um curso de olaria do IEFP, em Nisa, durante 8 meses e sentiu-se seduzida pela beleza do artesanato nisense. Foram meses de muita entrega e aprendizagem, decidida como estava a tornar-se oleira e pedradeira. Após o curso, restaram oito dos quinze formandos e apenas um se “aventurou” no estágio, a formação em ambiente de trabalho com o senhor Pequito (oleiro) e a sua esposa, Joaquina (pedradeira). É na velha oficina de mestre Pequito, mais de 70 anos a “atirar o barro à parede”, que Ilda Marques aprende os ensinamentos do veterano oleiro, garante as tarefas ditas “masculinas” como a roda de oleiro, dando formas ao barro e também as de cariz mais “feminino” como é o trabalho reservado às pedradeiras. E é nesta duplicação de tarefas que Ilda Marques se sente como “peixe na água”, como artista e criadora. Conserva os conselhos do seu mestre, respeita as concepções tradicionais da olaria de Nisa, mas entende que o artesanato do barro não é uma arte parada no tempo e que há um caminho imenso a descobrir e a percorrer. Sente que a inovação tem o seu lugar próprio e a prova disso é o carinho com que são recebidas cada novo tipo de peças que cria e dá a conhecer nas redes sociais. É um caminho novo para a olaria nisense, já experimentado, sem aparente sucesso, por outros oleiros na década de 60. O “novo”, o diferente, traz sempre consigo alguma desconfiança e oposição, mas Ilda diz ser uma “sonhadora” e está determinada a prosseguir este percurso profissional por que enveredou. Após dois anos como oleira e pedradeira, fazendo e aprendendo, Ilda Marques esteve na última Feira de Artesanato de Vila do Conde e sentiu a admiração que os seus trabalhos despertaram entre os visitantes do evento.
Ali mostrou e vendeu as peças que a sua imaginação desenhou e criou, desde candeeiros, relógios, letras, aves, imagens de santos, enfim toda uma panóplia de objectos com valor decorativo e ao mesmo tempo, outras peças de função mais utilitária. “ A inovação abriu-me muitos caminhos, outros horizontes para a aplicação do barro, sem deixar de respeitar e ser fiel aos princípios da olaria pedrada de Nisa para a qual dou o meu contributo para que chegue mais além e possa despertar o interesse dos mais jovens, para que percebam que não são só potes, barris, cantis e afins. Há um campo vasto a explorar numa actividade que pode ser rentável se houver aplicação e vontade de a fazer progredir. Por mim, tenho pena de não ter começado mais cedo” – garante-nos. A oficina de mestre Pequito, a “casa” onde dá livre-trânsito à sua imaginação, é visitada por uma diversidade de clientes ou simples curiosos, não faltando nestas visitas, as dos alunos do Agrupamento de Escolas, ali mesmo ao lado. Ilda já percorreu quase todo o país e esteve em programas televisivos, desde a “Praça da Alegria” ao “Programa da Manhã” para além da reportagem feita no local pelo jornalista Joaquim Franco. “Estou agregada a um espaço de trabalho, antigo e tradicional que muito respeito. Estas paredes estão cheias de história, “viram” muito barro lançado à parede pela mão dos oleiros, mestres e aprendizes, e ouviram, vezes sem conta, o som ronceiro da roda do mestre no seu labor para dar forma e vida a uma peça. A minha vida mudou bastante, encontrei uma forma de arte que me inspira e me desafia a cada dia que passa. Não tenho palavras para agradecer a paciência, os ensinamentos e o estímulo que me têm dado o mestre Pequito e a sua esposa Joaquina. Sem eles, sem a sua ajuda e a confiança que depositaram em mim, não teria conseguido. Agora, o caminho faz-se caminhando. O meu é o de apostar na inovação da olaria pedrada de Nisa, criando novas peças, recuperando algumas de cariz tradicional e que deixaram de se fazer, convicta de que o meu trabalho pode dar um novo impulso à arte tradicional do barro.”
Para já, está a mexer com concepções arreigadas e ao mesmo tempo a despertar um movimento de simpatia, levando a olaria pedrada de Nisa a ser vista com outros olhos. O sonho está em marcha!” E como canta o poeta: “sempre que um homem (ou mulher) sonha, o mundo pula e avança”. A OLARIA PEDRADA DE NISA Dar formas ao barro é uma arte milenar com grande expressão no Alentejo. A olaria pedrada de Nisa caracteriza-se pelas suas morfologias e funcionalidades, nela sobressaindo a vertente decorativa. Pouco se sabe sobre as suas origens, havendo quem aponte o seu aparecimento ao tempo dos visigodos, não sendo conhecidas, no entanto, referências anteriores aos finais do século XIX. Para a sua concepção, são utilizadas argilas de exploração local. O quartzo utilizado é originário dos filões de rochas quartzíticas da Serra de S. Miguel. O processo de fabrico divide-se em várias fases e na sua composição, a Olaria de Nisa, utiliza três tipos de barros: o preto, o branco e o vermelho (este proveniente de fora do concelho e que dá cor à peça). Na preparação, os barros são colocados a derregar num “barreiro” (tanque) e misturados com água, criando uma pasta semilíquida. Com um crivo e já em outro barreiro, são retiradas todas as impurezas. De seguida e depois de amassado em “pélas” (pequenas quantidades), é “aventado” (atirado) contra a parede para que, quando caiam, percam a quantidade de água que tinham em excesso.
Após este processo e depois de já ter passado pela “atoquina” (mesa onde a pasta é amassada), o barro é colocado na roda (accionada com o pé), onde o oleiro após molhar as mãos no “barranhão” (recipiente com água) inicia a sua moldagem. Por fim e ainda na roda, depois de moldada a peça é aperfeiçoada por uma cana ou uma “aplanata” (pedaço de feltro). Pelas delicadas e experientes mãos femininas começa a sua originalidade enquanto decoração. Utilizando dedais, casquilhos de lâmpadas e agulhas de coser para fazer o risco que irá conferir à peça o seu desenho final. Depois deste meticuloso processo e ao longo do risco, são incrustadas as pedrinhas brancas de quartzo leitoso. Folhas, frutos, ou outro tipo de motivos da fauna e flora regional, são os padrões decorativos que figuram na Olaria de Nisa. No que toca à cozedura e na linguagem regional de Nisa, (1)  “os dois atos da cozedura são designados por desquente e lavar a loiça. Para o desquente, o oleiro utiliza lenha grossa, que por fazer uma chama baixa, liberta muito fumo que se aglomera dentro da câmara do forno, tornando as peças negras. Quando o fumo desaparecer e a cor do lume for vermelho ou alaranjada, significa que o forno está a uma temperatura próxima dos 800ºC, começando então a fase seguinte – o lavar a loiça.” [1]  Branco, Maria (1986), Universidade de  Évora https://www.cm-nisa.pt/site_biblioteca/historialocal/arte/aescoladeolari... O OLEIRO E A PEDRADEIRA
António de Oliveira Caixado Pequito é o decano dos oleiros nisenses. Anda há mais de 70 anos a “atirar o barro à parede”, a fazer ginástica com os pés e as mãos, agitando a roda com que vai moldando cada peça de barro. Começou a actividade mal saiu da escola e só a interrompeu para cumprir o serviço militar, com passagem por Angola. Pela sua oficina na antiga rua do Depósito da Água passaram milhares de pessoas, gente letrada e outras nem tanto, umas e outras movidas pela vontade de aprender ou de perceber a génese e o funcionamento da olaria pedrada de Nisa. À custa de dar ao pedal e de mover a roda de oleiro, percorreu o país de lés a lés, em feiras de artesanato, em iniciativas do poder local ou convidado para programas televisivos. Participações quase sempre acompanhado pela esposa, Joaquina da Graça Mendes, uma vida inteira a plantar flores na moleza do barro e a incrustá-las, dando-lhe um vivo relevo, de pequeninas pedras em quartzo. Uma vida a dois, a que se juntou vinda dos filhos e netos. Uma história de vida, dedicada à olaria pedrada de Nisa e que merece ser reconhecida.  Mário Mendes