14.10.24

TEXTOS DE AUTORES NISENSES - Carlos Cebola

Contos de Montes Ermos (2) - A Opa do Nézinho "Mas isto é, exactíssimamente, a história da opa do Nézinho" - exclamou o Adalberto, deixando cair a mão, numa palmada sonora, sobre jornal aberto em cima do joelho. "Que histónia?" - perguntou o Zé Mania. Estavam os dois sentados, à sombra de uma velha latada, em dossel, por sobre a porta da rua. Ler o jornal, ao cair da tarde, era uma cerimónia ritual que ambos faziam, desde há anos. Ou melhor, que o Adalberto fazia, porque era ele quem, sempre, lia. Embora também soubesse ler, o Zé Mania limitava-se a ouvir. E estava certo. Com aquela deficiência, que nunca conseguira superar, ninguém suportava uma leitura feita por ele. Imagine-se. Não pronunciava o "r". Melhor dizendo, trocava o "r" pelo "n". Até no próprio nome. Daí o Zé Mania. E atendendo a tal facto, o Adalberto preferia arcar sozinho com a tarefa da leitura diária. Como a pergunta não merecesse resposta, o Zé Mania insistiu: "Que histónia foi essa da opa do Nézinho?" Em Montes Ermos, como, por certo, em tantas outras vilas, cidades ou simples freguesias, havia, desde tempos remotos, duas colectividades que ocupavam lugares cimeiros nas cerimónias e festividades religiosas. A Irmandade das Almas: a mais antig, numerosa, conceituada e solene, com os seus balandraus preto e ocupando a primeira fila dos bancos da igreja. E a Confraria do Santíssimo, tamb+em antiga, mas não tanto, e que há mais de cema anos começara por abrilhantar a procissão do Corpo de Deus, com as suas vistosas opas vermelhas. E, como sempre acontece, até na comunidade eclesial, entre as duas colectividades havia um fosso, aparentemente sem expressão mas, na realidade, intransponível. Abissal, mesmo. Porque embora todos afirmassem o contrário, ele tinha uma componente cultural, social e, até, política que nem os esforços do padre Albino, durante dezenas de anos, conseguiram ultrapassar. O Nézinho, ainda que religioso convicto, frequentador assíduos das cerimónias da igreja e colaborador, sempre disponível, para todas as tarefas ligadas a manifestações de fé, nunca conseguira ser admitido na Irmandade das Almas. E este era o seu maior desgosto. Um desgosto tão grande que lhe punha a alma mais triste do que a opa preta, que ele não podia vestir, ainda que, dia e noite, sonhasse com ela. Dada a sua condição de trolha nas obras de mestre Tachoulas, um herege confesso, o Nézinho teria de contentar-se, vida inteira, com a opa vermelha da Confraria do Santíssimo. Durante o ano, tudo bem. Mas, em chegando a Semana Santa, o Nézinho entrava numa tristeza digna de quarta-feira de Trevas e nem a alvoradado Domingo da Ressurreição lhe aliviava a alma. Aqueles dias eram mais do que pesadelos. Assistir e acompanhar as solenes procissões de Quinta e Sexta-feir Santas, que até metiam Banda de Música, a Vila inteira em fatode cerimóni e ele, Nézinho, ter de misturar-se com a multidão, sem ao menos poder envergar a opa vermelha, porque naqueles dias, de luto, todo o cerimonial era presidido e realizado pela Irmandade das Almas, de opas pretas. Certa noite, em Quinta.feira Santa, horas antes de a procissão sair, encheu-se de coragem. Já na igreja, apanhou o sacristão a jeito. " Eu não posso vestir uma opa preta?" - perguntou. O sacristão olhou-o, quase horrorizado. "Nem pensar!". "Mas... então...". "Nem pensar!" - repetia o sacristão, enquanto mudava um castiçal do altar de Santa Teresinha para o altar do Senhor Morto. No ano seguinte, o Nézinho tentou de novo. Desta vez junto do senhor vigário. "Se eu visto uma opa encarnada em todas as procissões, por que é que não posso vestir uma opa preta, nas procissões da Semana Santa?" - perguntou. Mas nem as palavras do padre Albino lhe aliviaram o luto da alma. Um ano depois, voltou a tentar com nova táctica. Ele tinha conhecidos, amigos, até, parentes na Irmandade das Almas, seria de caso que nenhum deles poderia dar uma ajuda? E, como o não conseguiu, voltou à carga, no ano seguinte. E no outro. E durante os demais anos que lhe restaram de vida. Sempre em vão. Chegando a Semana Santa, com aquelas procissões tão lindas, que percorriam as ruas da Vila, arrastando um mar de gente e o Nézinho, porque não podia vestir uma opa preta, lá se misturava com a multidão, participando, é certo, mas com a alma mais triste que o manto da Senhora de Ao Pé da Cruz. Tristeza que, por ironia do destino, teve seu fim num primeiro dia de uma Semana Santa. Depois do velório, quando o vigário se preparava para "encomendar a alma" do Nézinho e o Tito Marceneiro se aprestava para fechar o caixão, o presidente da Confraria do Santíssimo ergueu-se pesaroso e, com um rosto de pedra batida, colocou aos pés do cadáver a opa vermelha da sua Confraria. E foi então que aconteceu o que não era suposto acontecer. O padre Albino acercou-se do caixão. Pegou na opa vermelha, que devolveu ao estupefacto presidente da Confraria do Santíssimo e, com o ar mais esfíngico deste mundo, colocou em seu lugar a opa preta da Irmandade das Almas. As lágrimas quedaram-se, por momentos, nos olhos de uma assistência lacrimosa. Num envergonhado à parte e em voz sumida, o sacristão ainda sussurrou: "Não faça isso, senhor vigário". " E por que não?" - retorquiu o padre, no mesmo tom, para logo acrescentar: " Que ao menos na morte, tenha aquilo que mais desejou em vida e nunca conseguiu". " Mas... senhor vigário...". "Assunto encerrado". E, levantando a cabeça e erguendo a voz, o padre Albino entoou: "Pai nosso, que estais no céu..." Quando o Adalberto se calou, o Zé Mania olhava-o boquiaberto. " A que propósito vem toda essa histónia da opa do Nézinho? Tá aí no jonnal?"."Não. Não está". " Então, não pencebo". "Nem queiras! Aliás, a notícia, que vem, aqui, no jornal, também não é para perceber". "Então, é pana quê?" Atirando com o jornal para cima da cadeira, o Adalberto levantou-se, retesou as pernas e começou a dirigir-se, vagarosamente, para o outro lado do Largo, alheio ao bracejar e às imprecações do atónito Zé Mania. * Carlos Tomás Cebola - Novembro, 99 in Folha de Montemor