Que grande azáfama ia naquele princípio de tarde pela rua da
minha avó!
O caso não era para
menos. No meio da tarde daquele mês de Setembro tínhamo-nos lembrado de fazer
uma burricada, ou seja, um passeio com piquenique, onde a deslocação até à
quinta do primo Rui – o Retiro – seria feita de burro. Haveria burros para
quase todos, embora alguns elementos da organização tivessem de ir de bicicleta
para assegurar o habitual apoio logístico…
A rua da minha avó fervilhava de agitação porque era
necessário fazer a distribuição dos burros, mas antes ainda aparelhá-los
devidamente, prendê-los com cuidado para não haver fugas inesperadas, ir dando
água aos mais sedentos porque o calor apertava… e claro, gozar com o panorama e
as peripécias.
A Josefa e o António Tomás não estavam nada contentes,
porque muitos dos animais estavam mesmo em frente da casa deles, que ficava
mesmo junto da cavalariça dos meus avós. Mas os cachopos da rua estavam
deliciados e batiam palmas de cada vez que conseguiam que o burrinho do Ti
Camilo se empinasse, o que não era difícil porque ele estava viciado na
habilidade. Hoje, até a Tá Ventura assomava à porta da sua taberna para ver o
que se passava, embora, com o seu ar rabugento, fosse sol de pouca dura.
Rapidamente se recolhia, afastando as ripas de plástico e resmungando com a
barulheira que fazíamos com os animais e a vozearia de toda a malta.
Antes da partida, o meu irmão e o Joaquim António, os
organizadores encartados nas artes equídeas, fizeram o solene aviso: “As burras
têm sempre de ir atrás” – havia algumas delas que estavam “saídas” (com o cio)
– “e portanto nada de se porem a correr ou a parar a meio do caminho porque se
não vamos ter problemas…”
O passeio até ao Retiro do primo Rui era felizmente todo
feito pelas Devesas de Trás e pela azinhaga que nos levava para a Capela da
Senhora da Graça, e por isso não haveria seguramente problemas com o trânsito.
As únicas pessoas que encontrámos foram as lavadeiras que tinham ficado à
conversa, nos tanques, à saída de Nisa. Por isso até correu tudo bem e com bastante
organização (especialmente se comparado com outras organizações do mesmo
tipo…).
Quer dizer, correu bem à ida e até chegarmos a Nisa, ao fim
da tarde…
Na volta, resolvemos passar pelo matadouro e pela fonte que
fica no largo, para os burros poderem beber um pouco de água, e subir depois
até à porta da vila. Aí é que a coisa se
transtornou…
Os burros têm um vício danado, que tem de ser sempre
contrariado: quando se apercebem que estão a chegar a casa, aceleram o passo e
ficam muito mais teimosos que o costume. Talvez a organização não tivesse feito
este aviso a tempo. Pior ainda, quando os primeiros chegaram ao largo da vila,
antes da Igreja Matriz, deram com um funeral exactamente a sair da Igreja, e
tiveram a excelente e recomendada intenção de parar. O problema é que, por um
lado, os burros já tinham percebido que iam para casa, e depois aquela paragem
inesperada tinha gerado a desorganização nas prioridades tanto recomendadas.
Já estão a ver, não é? O final foi quase de filme cómico
italiano.
O enterro completamente destroçado, o Padre a fugir para
dentro da Igreja novamente, as mulheres embrulhadas nos seus xailes negros de
luto pesado, rezavam agora não pelo morto mas pela sua sorte, os cachopos
delirantes corriam atrás dos burros e das burras, tentado agarrar uns e outros,
para as meninas não se magoarem… e somente os homens que levavam o caixão
tinham mantido a calma.
Lá estavam, encostados à parede sem arredar pé, limpando o
suor da cara e da careca com os lenços todos amarrotados, e sussurrando por
entre o silêncio que o momento obrigava: “Esta rapaziada é tramada! Já nem
respeitam os mortos! Se já se viu uma coisa destas!”
* Texto de Ana Vidal publicado in http://portadovento.blogs.sapo.pt - 7/9/2009