3.2.14

NISA: Azinhagas da Memória *

Que grande azáfama ia naquele princípio de tarde pela rua da minha avó!
 O caso não era para menos. No meio da tarde daquele mês de Setembro tínhamo-nos lembrado de fazer uma burricada, ou seja, um passeio com piquenique, onde a deslocação até à quinta do primo Rui – o Retiro – seria feita de burro. Haveria burros para quase todos, embora alguns elementos da organização tivessem de ir de bicicleta para assegurar o habitual apoio logístico…
A rua da minha avó fervilhava de agitação porque era necessário fazer a distribuição dos burros, mas antes ainda aparelhá-los devidamente, prendê-los com cuidado para não haver fugas inesperadas, ir dando água aos mais sedentos porque o calor apertava… e claro, gozar com o panorama e as peripécias.
A Josefa e o António Tomás não estavam nada contentes, porque muitos dos animais estavam mesmo em frente da casa deles, que ficava mesmo junto da cavalariça dos meus avós. Mas os cachopos da rua estavam deliciados e batiam palmas de cada vez que conseguiam que o burrinho do Ti Camilo se empinasse, o que não era difícil porque ele estava viciado na habilidade. Hoje, até a Tá Ventura assomava à porta da sua taberna para ver o que se passava, embora, com o seu ar rabugento, fosse sol de pouca dura. Rapidamente se recolhia, afastando as ripas de plástico e resmungando com a barulheira que fazíamos com os animais e a vozearia de toda a malta.
Antes da partida, o meu irmão e o Joaquim António, os organizadores encartados nas artes equídeas, fizeram o solene aviso: “As burras têm sempre de ir atrás” – havia algumas delas que estavam “saídas” (com o cio) – “e portanto nada de se porem a correr ou a parar a meio do caminho porque se não vamos ter problemas…”
O passeio até ao Retiro do primo Rui era felizmente todo feito pelas Devesas de Trás e pela azinhaga que nos levava para a Capela da Senhora da Graça, e por isso não haveria seguramente problemas com o trânsito. As únicas pessoas que encontrámos foram as lavadeiras que tinham ficado à conversa, nos tanques, à saída de Nisa. Por isso até correu tudo bem e com bastante organização (especialmente se comparado com outras organizações do mesmo tipo…).
Quer dizer, correu bem à ida e até chegarmos a Nisa, ao fim da tarde…
Na volta, resolvemos passar pelo matadouro e pela fonte que fica no largo, para os burros poderem beber um pouco de água, e subir depois até à porta da vila.  Aí é que a coisa se transtornou…
Os burros têm um vício danado, que tem de ser sempre contrariado: quando se apercebem que estão a chegar a casa, aceleram o passo e ficam muito mais teimosos que o costume. Talvez a organização não tivesse feito este aviso a tempo. Pior ainda, quando os primeiros chegaram ao largo da vila, antes da Igreja Matriz, deram com um funeral exactamente a sair da Igreja, e tiveram a excelente e recomendada intenção de parar. O problema é que, por um lado, os burros já tinham percebido que iam para casa, e depois aquela paragem inesperada tinha gerado a desorganização nas prioridades tanto recomendadas.
Já estão a ver, não é? O final foi quase de filme cómico italiano.
O enterro completamente destroçado, o Padre a fugir para dentro da Igreja novamente, as mulheres embrulhadas nos seus xailes negros de luto pesado, rezavam agora não pelo morto mas pela sua sorte, os cachopos delirantes corriam atrás dos burros e das burras, tentado agarrar uns e outros, para as meninas não se magoarem… e somente os homens que levavam o caixão tinham mantido a calma.
Lá estavam, encostados à parede sem arredar pé, limpando o suor da cara e da careca com os lenços todos amarrotados, e sussurrando por entre o silêncio que o momento obrigava: “Esta rapaziada é tramada! Já nem respeitam os mortos! Se já se viu uma coisa destas!”
* Texto de Ana Vidal publicado in http://portadovento.blogs.sapo.pt - 7/9/2009