Este homem, na sua aparente frágil figura, era um “gigante”
e merecia bem que lhe escrevessem um livro. Páginas que dissessem, mostrassem,
aos actuais e vindouros, a riqueza de uma vida, que pouco teve de rica, mas
muito de versatilidade e alegria. Muitas vidas, resumida numa só, de mais
noventa anos, cheia, plena de histórias e aventuras, como foi a do ti
Serralhinha.
Alfaiate, músico, comerciante de feiras e mercados, o “homem
do brunhol” que manteve, durante décadas, a sua forma especial de o
confeccionar e de lhe transmitir um sabor característico e inconfundível, num
tempo em que ninguém tinha ainda ouvido falar em colesterol e outros
“fantasmas” , inventados para vender medicamentos e programas de emagrecimento,
ou “combater as gorduras”. Os pobres tinham lá gorduras... Tinham era tripas
que nunca serviam, quase secas e desreguladas de nunca sentirem o afago de um
condimento alimentar. Mesmo lá nas Lisboas, onde chamam “farturas”, à massa
frita, os nisenses nunca esqueciam o gostinho único e especial do “brunhol” do
ti Serralhinha e da sua dedicada esposa, a D. Júlia.
Era presença habitual, com a sua barraquinha, no extremo da
fila nos mercados e feiras no Rossio, próximo do Calvário, onde assentava pouso
de venda com o seu sogro, o senhor Irineu, antes de se mudar de “armas e
bagagens” para um local fixo no Mercado Municipal de Nisa. Era presença,
habitual, com as barraquinhas de
“brunhol” ou de pinhoada e santinhas de açúcar nas romarias da Senhora da Graça
e da Senhora dos Prazeres, quando estas constituíam uma importante festa de
convívio, fé e reunião dos nisenses espalhados pelo mundo.
Alfaiate e barbeiro, com oficina na rua da Devesa, o ti
Serralhinha fazia daquele espaço, pouco amplo, local de tertúlia e de convívio,
onde não faltavam as conversas sobre futebol, mas, sobretudo, sobre música.
O ti Serralhinha foi músico na banda, baterista em diversos
conjuntos, naquela altura, nos anos 40, 50 e 60 do século passado, designados por
troupes jazz ou orquestras.
Tocou nos “Unidos”, na “Atlântida Nisense” e noutros.
Contava histórias inenarráveis das viagens que faziam para abrilhantarem bailes
e festas populares, num tempo em que os meios de transporte eram rudimentares,
lentos e ruidosos.
Como baterista, os seus “solos” tornaram-se uma “imagem de
marca”, a bateria do ti Serralhinha. Soavam os primeiros toques e ala que se
faz tarde, os jovens “disparavam” em direcção aos seus “alvos”, as moças que
mais lhes arregalavam os olhos e que numa fracção de tempo podiam perder de
vista e de par. Invadiam a “pista de dança”, nos salões do Benfica ou da
Sociedade e ao som das músicas do Salvatore Adámo e de outros artistas
românticos, dançavam e faziam promessas de amor.
A bateria do ti Serralhinha, marcava o ritmo e o compasso do
“Tombe la neige”, numa sequência rítmica tão popular e perfeita que era quase
possível dançar sem ouvir os restantes acordes musicais.
Conversador nato e contador de mil e umas histórias, há anos
que tínhamos aprazado uma conversa de longa duração para passar à escrita.
Imprevistos vários, impediram-nos de concretizar esta ideia
e transmitir um pouco da história de vida deste homem, figura popular que como
tantos outros nisenses, deram tanto à música e à cultura da sua terra. Serão,
sempre, os “heróis anónimos” de uma história local que, sem eles, ficaria muito
mais pobre e triste.
António Dinis Serralha, o “ti Serralhinha” veio ao mundo a 6
de Maio de 1921. Despediu-se desta terra, que ele amou como poucos, dos seus familiares
e amigos, no dia 28 de Janeiro, com 92 anos.
Morreu um homem bom, alegre, extrovertido, que com os meios
que teve ao seu alcance procurou fazer os outros felizes.
Repouse em paz, Ti Serralhinha!
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 5/2/2014