5.2.14

IN MEMORIAN: A bateria do Ti Serralhinha não deixará de tocar...


Este homem, na sua aparente frágil figura, era um “gigante” e merecia bem que lhe escrevessem um livro. Páginas que dissessem, mostrassem, aos actuais e vindouros, a riqueza de uma vida, que pouco teve de rica, mas muito de versatilidade e alegria. Muitas vidas, resumida numa só, de mais noventa anos, cheia, plena de histórias e aventuras, como foi a do ti Serralhinha.
Alfaiate, músico, comerciante de feiras e mercados, o “homem do brunhol” que manteve, durante décadas, a sua forma especial de o confeccionar e de lhe transmitir um sabor característico e inconfundível, num tempo em que ninguém tinha ainda ouvido falar em colesterol e outros “fantasmas” , inventados para vender medicamentos e programas de emagrecimento, ou “combater as gorduras”. Os pobres tinham lá gorduras... Tinham era tripas que nunca serviam, quase secas e desreguladas de nunca sentirem o afago de um condimento alimentar. Mesmo lá nas Lisboas, onde chamam “farturas”, à massa frita, os nisenses nunca esqueciam o gostinho único e especial do “brunhol” do ti Serralhinha e da sua dedicada esposa, a D. Júlia.
Era presença habitual, com a sua barraquinha, no extremo da fila nos mercados e feiras no Rossio, próximo do Calvário, onde assentava pouso de venda com o seu sogro, o senhor Irineu, antes de se mudar de “armas e bagagens” para um local fixo no Mercado Municipal de Nisa. Era presença, habitual,  com as barraquinhas de “brunhol” ou de pinhoada e santinhas de açúcar nas romarias da Senhora da Graça e da Senhora dos Prazeres, quando estas constituíam uma importante festa de convívio, fé e reunião dos nisenses espalhados pelo mundo.
Alfaiate e barbeiro, com oficina na rua da Devesa, o ti Serralhinha fazia daquele espaço, pouco amplo, local de tertúlia e de convívio, onde não faltavam as conversas sobre futebol, mas, sobretudo, sobre música.
O ti Serralhinha foi músico na banda, baterista em diversos conjuntos, naquela altura, nos anos 40, 50 e 60 do século passado, designados por troupes jazz ou orquestras.
Tocou nos “Unidos”, na “Atlântida Nisense” e noutros. Contava histórias inenarráveis das viagens que faziam para abrilhantarem bailes e festas populares, num tempo em que os meios de transporte eram rudimentares, lentos e ruidosos.
Como baterista, os seus “solos” tornaram-se uma “imagem de marca”, a bateria do ti Serralhinha. Soavam os primeiros toques e ala que se faz tarde, os jovens “disparavam” em direcção aos seus “alvos”, as moças que mais lhes arregalavam os olhos e que numa fracção de tempo podiam perder de vista e de par. Invadiam a “pista de dança”, nos salões do Benfica ou da Sociedade e ao som das músicas do Salvatore Adámo e de outros artistas românticos, dançavam e faziam promessas de amor.
A bateria do ti Serralhinha, marcava o ritmo e o compasso do “Tombe la neige”, numa sequência rítmica tão popular e perfeita que era quase possível dançar sem ouvir os restantes acordes musicais.
Conversador nato e contador de mil e umas histórias, há anos que tínhamos aprazado uma conversa de longa duração para passar à escrita.
Imprevistos vários, impediram-nos de concretizar esta ideia e transmitir um pouco da história de vida deste homem, figura popular que como tantos outros nisenses, deram tanto à música e à cultura da sua terra. Serão, sempre, os “heróis anónimos” de uma história local que, sem eles, ficaria muito mais pobre e triste.
António Dinis Serralha, o “ti Serralhinha” veio ao mundo a 6 de Maio de 1921. Despediu-se desta terra, que ele amou como poucos, dos seus familiares e amigos, no dia 28 de Janeiro, com 92 anos.
Morreu um homem bom, alegre, extrovertido, que com os meios que teve ao seu alcance procurou fazer os outros felizes.
Repouse em paz, Ti Serralhinha!
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 5/2/2014