19.2.14

Dr. António Granja: Lembrança de um médico notável e de um humanista

Conheci, ainda, o Dr. António Granja, médico natural do concelho de Mação, falecido em 1964 e que à população do município de Nisa prestou tão brilhantes como assinaláveis serviços, num tempo em que as tecnologias de saúde eram rudimentares, os meios de transporte muito precários e eram os homens dos “partidos médicos” quais “João Semanas” que garantiam os cuidados básicos de saúde a uma população numerosa e bastante carenciada, a todos os níveis.
Homem simples, dedicado e humanista, António Granja, granjeou, justamente, a fama de “médico do povo”, a todos acudindo em caso de aflição, mesmo quando não reprimia alguns impropérios, próprios do seu feitio rebelde e da indignação que, não raras vezes, mostrava, para com a situação política e social do país.
Faleceu há 50 anos o Dr. António Granja. A poetisa popular nisense Maria Pinto escrevia, poucos anos mais tarde, uns versos em que pedia a erecção de um monumento ao Dr. António Granja. Versos simples, saídos da alma do povo e que revelavam a urgência e a justiça no reconhecimento de um homem e de uma vida de médico, dedicada e exemplar.
Em 1957, ainda em vida, foi prestada uma homenagem pública ao Dr. António Granja, a que compareceram os “notáveis” da terra e do concelho e a população.   Um almoço, nas instalações da Hidro-Eléctrica do Alto Alentejo, seguido dos habituais discursos de enaltecimento do homem, do médico e dos seus relevantes serviços.
Maria Pinto achava – e com razão – que era “pouco” para a dimensão humanista do médico e do benfeitor. Ficaram os seus versos a “pregar no deserto” durante anos, mas como mensagem a alertar a consciência popular e após o 25 de Abril, numa das maiores manifestações cívicas e de demonstração de gratidão a que Nisa assistiu, o Dr. António Granja foi, finalmente, alvo da homenagem a que a sua dedicação à causa pública de há muito justificava.
Quadras ao dr. Granja

Do Dr. António Granja
o monumento esqueceu;
pois todos davam dinheiro
p´ra lembrar o nome seu.

Muito recorda o seu nome,
o do bondoso falecido,
muito praticou o bem
é injusto ser esquecido.

Levantem pois a imagem
do bom do Dr. tão amado,
que se encontra no Mação,
já há tempos sepultado.

Amigo de rico e pobre,
a alguns dava sustento;
nunca se esqueçam dele,
levantem-lhe o monumento.

Sem levar nada a ninguém,
tinha dó dos pobrezinhos.
Levantem-lhe uma memória,
todos dão seus bocadinhos.

Se não fosse assim tão bom,
nem se podia estar doente;
antes de chamar o médico,
tinha de ir dinheiro à frente.

Pede o povo desta terra
a última recordação,
trabalhou cá muitos anos,
homem de bom coração.
Maria Pinto
A 8 de Agosto de 1981 e com a presença do Presidente da República, general Ramalho Eanes, o médico e humanista foi digna e popularmente homenageado, com a erecção de um busto no largo junto à Porta da Vila, largo que passou a ostentar o seu nome.
Nisa cumpria, assim, um desígnio de reconhecimento e gratidão a um homem que, não sendo filho de Nisa, pôs todo o seu conhecimento, dedicação e altruísmo ao serviço da população do concelho, particularmente, dos mais pobres e deserdados da sorte.
Vale a pena, transcrever, o texto de Carlos Franco Figueiredo, publicado em 6/3/1965 no “Correio de Nisa”, para melhor podermos avaliar a real dimensão humana e social de António Granja.
Homenagem ao Dr. António Granja - Agosto de 1981
O Dr. António Granja, médico solidário
A 26 de Abril de 1930 chegava a Nisa um jovem médico, chamado a preencher a vaga deixada na Municipalidade pela morte de Henrique Miguéns, irmão do notável benemérito e distinto clínico que foi o Dr. Francisco do mesmo apelido, cuja memória os nisenses perpetuaram no monumento que lhe erigiram no jardim público, em princípio da quinta década deste século.
Fisicamente, o novo doutor, que terminara o curso de Medicina em 4 de Julho de 1927, na Universidade de Coimbra, era de compleição forte e baixa estatura. Tinha a expressão grave, olhos perscrutadores e profundos, ao mesmo tempo reveladores de temperamento impulsivo e bonomia de alma. Chamava-se António Granja. Era filho de Manuel Granja e Hermínia Marques e natural de Castelo (Mação).
Seus pais, de ascendência humilde, de muito cedo o haviam educado no contacto directo com a gente anónima do povo; e, de garoto, ele se habituara a ser solidário com o próximo sofredor, pesando-lhe na alma que desabrochava pura, as dores alheias, físicas e sociais. Já homem, fora mais uma nata tendência que o levara a Coimbra, a frequentar a Faculdade de Medicina. Impusera a si próprio que escolhera mais que uma simples profissão: um culto.
E, num sentido amplo, pródigo, consequentemente isso se verificaria no decorrer do mais longo período da sua vida, que remonta ao começo da actividade como médico municipal, até à hora da morte, ocorrida em 5 de Novembro do ano findo. António Granja permaneceu coerente consigo mesmo, até ao fim; firme, vertical, devotado aos seus ideais, como só os grandes homens são capazes, debalde mesquinhas adversidades, que também o não pouparam, vinculando-lhe com profunda amargura o espírito honesto e são.
Durante trinta e quatro anos, simples, na sua modéstia que a muitos fazia lembrar uma das personagens de Júlio Dinis, incansável, tendo a nítida consciência do seu dever, ele percorreu em ritmo diário, a pé, as ruas da vila de Nisa, dando consultas gratuitas aos pobres... e a ricos!
No seu conceito pessoal, a dor física do mundo generalizava-se ao plaino largo de uma sociedade sem classes, despida de ostentosos baluartes financeiros, por ser única, uniforme, a grandeza do seu proceder, no objectivo primordial de suprimir ou apenas atenuar enfermidades, incondicionalmente, sem atender a materialismos ou "chorudas" remunerações.
Muitas vezes a sua mão piedosa deixou dinheiro e remédios à cabeceira de pacientes sem outros recursos, além de seus pobres braços paralisados pela doença, e por isso mesmo impossibilitados de ganhar o magro sustento quotidiano.
Algumas vezes os familiares de um ou outro "caso perdido" viram os seus olhos, aparentemente duros, nublarem-se de lágrimas de dor.
Além do mais, era um profissional, cuja competência foi inúmeras vezes comprovada por assinaláveis êxitos e reconhecida até por notáveis figuras da medicina portuguesa.
Viveu sempre só. O seu mundo privado, familiar, a sua casa, era aquele velho quarto da "Pensão Correia" que ocupou até aos últimos dias de vida, quando o grassar célere da doença que havia de vitimá-lo, o obrigara a deslocar-se a Coimbra, a sujeitar-se às prescrições de colegas especializados.
Em sentido implícito, poderíamos defini-lo assim: uma existência amarrada a si mesma, em holocausto, por todas as outras que se fazia rodear. Perguntar-se-ia ainda:
Homenagem ao Dr. António Granja - 1957
Teria ele satisfeito ao tipo de homem que "constrói a sua solidão", segundo Saint Exupéry?
Ou seria a mesma apenas fruto de uma personalidade invulgar, cujo drama interior se processasse na busca incessante, mas passo a passo frustrada, de identificação psicológica ou solidariedade de alma? Os seus intempestivos mas efémeros estados de mau humor, que nem sempre foram encarados compreensivamente e com a indulgência que a sua situação requeria, quase denunciavam como verdadeira esta última hipótese.
Compete agora ao nisense dignificar-lhe a memória, ao nisense sem distinção de classes, atentando bem no valor real do homem que foi António Granja e na sublimidade e grandeza da sua obra, que quase chega a integrar-se numa benemerência com o seu quê de universalista, tal o amplo alcance do seu Exemplo.
E isto, porque foi Nisa que principalmente beneficiou da execução desse maravilhoso plano de dedicação humana. Nisa, a escolhida por ele, António Granja, que nem dali era filho...
Foi Nisa, porquanto o dr. Granja seria o mesmo dr. Granja em qualquer outro recanto, em qualquer outro lugar de Portugal e quiçá do mundo, aonde deliberasse fixar a sua actividade profissional. Para os seres como ele, tão raros nesta época onde continua a imperar uma desmedida avidez, mascarada de ambição e um acérrimo egoísmo, existe primordialmente o Homem adentro dos seus múltiplos problemas, a figura inolvidável do seu semelhante, a quem tudo dão, sem nada quererem em troca.
Carlos Franco Figueiredo
* À FLOR DA PELE - Mário Mendes in "`Alto Alentejo" - 19/2/2014-