Cumpre estas leis e poderás, pela calada,
desobedecer a todas as outras.
1. Inculca culpa na tua vítima. Convence-a de que é
responsável pelo que lhe está a acontecer. Se o fizeres, a tua tarefa estará
facilitada. Lembra-te: se aqui vítima há, és tu, cujas intenções são
“incompreendidas” pelos “ingratos e invejosos”.
2. Usa palavras mágicas: pátria, empreendedorismo,
sacrifício, futuro, reformas, construir, acreditar, inovação. Baralha-as numa
Bimby e faz bimbices. Se conseguires dizer sem te rires algo como “Pensar e
preparar o futuro do nosso país é proporcionar às gerações que nos irão suceder
as ferramentas adequadas para construir um Portugal diferente, num quadro de
qualidade, responsabilidade e inovação”, tens um lugar assegurado.
3. Diz que compreendes a insatisfação dos prejudicados e
concordas que, sim, têm razão, mas agora não pode ser nada. Justifica-te com a
burocracia, a qual és o primeiro a combater. Pede para adiarem o seu protesto,
que tu próprio reconheces como justo, “houve de facto erros, a corrigir no
futuro”, mas que em breve tudo se resolverá, se as pessoas tiverem “calma e paciência”
e souberem “aguardar discretamente”.
5. Usa factos. Não importa quais. E números. Muitos números.
Mostra gráficos. Sê firme, mesmo que não saibas o que estás a dizer. Não te
preocupes, com sorte o teu interlocutor não terá informação ou coragem para te
confrontar, e o risco de seres apanhado é inferior a 1,6% (número que acabo de
inventar, aliás). Quando te apresentarem factos contrários, responde que “são
casos isolados”. Simplifica ao absurdo mas, se necessário, foge na direcção
contrária, e diz que “a questão é demasiado complexa” para ser tratada “daquela
maneira” na praça pública.
6. Chora lágrimas de crocodilo. Se não tiveres de crocodilo,
chora lágrimas de raposa, de hiena, de lobo com pele de cordeiro, de rato de
sacristia, de coelho à caçadora, de abutre, ou, na pior das hipóteses, de
“intensa e enorme emoção”, porque tu, “pessoa razoável e pragmática”, raramente
“cedes à emoção”, mas quando cedes ela é sempre intensa e enorme, porque tu és
assim e “assumes” com plenitude a plenitude da plenitude.
7. Sabes que a crise tem unicamente por função baixar “o
custo do trabalho”. Corrijo: também servirá para vender alguns anéis públicos,
e os dedos que a eles vierem colados. Só que baixar o custo do trabalho é a
prioridade. Infelizmente, não o podemos dizer desta maneira. Então mostra
compaixão, geme, condói-te, solidariza-te, “compreende”. Etc. Faz como te digo
e vais ver que tudo corre bem.
8. Defende e respeita a tradição. Porque a tradição é “a
alma dum povo”. Lembra que, em contrapartida, para progredir é preciso
“proceder a reformas necessárias”. E são sempre necessárias, essas reformas,
ainda que “dolorosas”. Tu compreendes que são dolorosas, só que necessárias. Em
simultâneo, tenta respeitar “as bonitas tradições do nosso povo e de nossos
pais”. E nenhuma é tão bonita como o futebol.
9. Escolhe bem os funerais a que vais. Lembra-te: o morto é
o menos importante, a pedra na sopa da pedra. Se te candidatas a herdeiro do
trono, sê “discreto e humilde”, mas vai para a frente na fotografia. Lembra-te:
quando foi confrontativo, Ronaldo perdeu; quando foi humilde, Cristiano ganhou.
10. Ignora aqueles que dizem: não mates o mensageiro. Matar
a quem, senão ao mensageiro? Ignora aqueles que dizem que não se bate nos mais
fracos: bater em quem, senão nos mais fracos? Nos mais fortes? Só os idiotas
batem nos mais fortes. Não te armes em corajoso. Se quiseres mostrar coragem (até para
desviar as atenções), empurra um bêbado ou humilha um criado.
Cumpre estas leis e poderás, pela calada, desobedecer a
todas as outras. Ámen.
RUI ZINK - "O Público" - 11/02/2014
Docente universitário FCSH-UNL