14.2.14

ÁLVARO SEMEDO, UM JESUÍTA NISENSE NA CHINA (II)

Apresentamos, aqui, a segunda parte do trabalho sobre uma das figuras de maior projecção cultural e religiosa que nasceram em Nisa, o padre Álvaro Semedo. Através dele se pretende fazer um pouco de luz sobre a vida e a obra deste jesuíta nisense.
 A RELAÇÃO…. Comentada por quem a reeditou
Que a Relação da Grande Monarquia da China foi (é) uma obra de importância fundamental quer para a Europa, quer no quadro das relações luso-chinesas, com 500 anos, não restam dúvidas. O valor do trabalho realizado pelo padre Álvaro Semedo em mais de 20 anos de estudo, pesquisa e análise, é enaltecido na apresentação do livro nas palavras dos editores, representando a Fundação Macau:
"(...) Ao fazê-lo, pretendemos prestar aqui uma quadrúpula homenagem:
Ao autor, em primeiro lugar, tão injustamente esquecido, que foi uma personalidade multifacetada de sinólogo brilhante, missionário sacrificado, antropólogo, escritor e tradutor (a ele se deve, por exemplo, a primeira tradução das inscrições da famosa estela dos Cristãos Nestorianos, que se encontra no museu Xi´an). Um raro conjunto de qualidades alicerçado num sólido carácter de cristão coerente e animado por uma fé viva, o qual, apesar das humilhações e dos maus tratos que sofreu (e não foram pouco!), soube sempre distinguir o trigo do joio, manifestando grande admiração pela cultura e civilização chinesas, e profunda estima pelo seu povo, com quem compartilhou 22 anos de vida.
(...) Homenagem, finalmente, aos missionários da Companhia de Jesus que criaram e mantiveram o famoso Colégio de São Paulo, a primeira Universidade de tipo ocidental no Extremo Oriente".
     Foi por ocasião e para se associarem ao 4º centenário da fundação do colégio (1594-1994), que os Serviços de Educação e Juventude da Fundação Macau, procederam à reedição da principal obra do Padre Álvaro Semedo (Relação da Grande Monarquia da China), traduzido do italiano por Luís Gonzaga Gomes.
      Esta, é uma das situações paradoxais da obra, a de se tratar de tradução portuguesa de uma versão italiana, que por sua vez, traduz um texto original português, manuscrito há mais de três séculos e meio (1637).
        Não deixa de ser curioso (e lamentável...) que, após as edições em castelhano (1642), italiano (1643,1653,1667), em holandês (1670), em francês (1645,1667) e em inglês (1665), a primeira edição integralmente editada em língua portuguesa, visse a luz do dia, apenas em 1956 e em Macau, graças ao dinamismo e labor de Luís Gonzaga Gomes, um dos grandes sinólogos portugueses deste tempo.
Esta difusão internacional da obra, mostra bem a sua importância e a envergadura, seriedade e rigor com que Álvaro Semedo levou a cabo esta tarefa e analisou, vivendo "por dentro", contactando com os povos e as instituições, a sociedade chinesa.
Ele próprio o refere: "tenho estado a ver as coisas da China, no decurso de vinte e dois anos, terei decerto visto o que escrevi, bem como o que os outros escreveram de coisas que não viram, e falarei, necessariamente, com mais acerto, posto que com menos elegância".
Mais acerto, menos elegância, ou seja, mais verdade, investigação, análise. A crueza e o rigor das situações, a sobrepor-se à fantasia, à invenção, ao folhetim novelesco.
Não admira, pois, o impacto que a sua Relação teve, no século XVII, nos meios intelectuais, políticos e religiosos europeus, a quem o Império Celeste era apresentado como algo quase fantasmagórico, em relatos de viajantes que, ao velho adágio popular "quem conta um conto...", acrescentavam não um, mas muitos pontos.
É novamente, o jesuíta nisense, no início (pág.19) que escreve: "Dos que têm escrito acerca da China verifico que alguns, deixando quase todas as verdades no olvido, se entretêm apenas com coisas que andam afastadas da veracidade, pois que, encontrando-se esse reino longínquo e, tendo sempre esquivado, com todo o empenho, à comunicação com o estrangeiro, além de guardar para si, com particular cuidado, as suas coisas como se as guardasse até de si mesmo, resultou que, fora dele, só se conhece aquilo que deixa escorrer, como por excesso, pelas faldas da região de Cantão, parte desse Império aonde chegaram os portugueses."
O que nos causa perplexidade, isso sim, é o facto - mais um, na história da literatura portuguesa - de o autor, investigador e escritor de uma obra lida e estudada em todo o mundo, seja pouco conhecido no país onde nasceu, na  própria terra onde viu a luz do dia. Mais: que do seu trabalho, resultado de anos e anos a fio de investigador e observador, atento, da sociedade chinesa, tivessem outros colhidos os louros, de um edifício para o qual pouco contribuíram.
Estes e outros aspectos são referidos por António Aresta, na altura (1994) professor do Liceu de Macau, na introdução à presente edição. Aresta, licenciado em filosofia, não deixa de observar, com grande admiração, o que Álvaro Semedo escreveu sobre a educação na China.
" A descrição pormenorizada daquilo a que hoje apelidaríamos de sistema educativo chinês é notável. É um documento único e pioneiro na história da educação setecentista e no panorama da história das ideias educativas portuguesas. É uma verdadeira viagem ao interior de um império examinocrático, como muito bem lhe chamou Ernest Renan."
Álvaro Semedo e o Império Celeste
A Relação da Grande Monarquia da China (edição de 1994) tem 416 páginas e divide-se em duas partes. A primeira tem como título, Do Estado Temporal da China, onde encontramos um amplo conjunto de descrições e informações que vão desde a geografia, o ordenamento do território, o clima, as populações, a sociedade.
Uma sociedade que ele, Semedo, escalpeliza até ao mais ínfimo pormenor. Há variadíssimas informações, algumas que, pela sua profundidade constituem, como bem observou António Aresta, um autêntico tratado sobre o engenho e as artes dos chineses, a cultura, a educação, a vida familiar, as relações intra e inter-familiares. Álvaro Semedo descreve, com um soberbo espírito de observação, os usos e costumes, a etnografia e o folclore. Não deixa passar em claro a cortesia dos chineses, as ciências e as artes liberais, os jogos, os casamentos, os funerais e até a descrição das sepulturas dos chineses.
Antropólogo, escritor, historiador, assume vários papéis e ângulos de observação para bem descrever, com seriedade e rigor, tudo o que vive à sua volta. Religioso e propagador da fé cristã, tem de se multiplicar em várias funções para conseguir o melhor "retrato" da sociedade que, mesmo como "estrangeirado", integra. Essa integração permite-lhe observar e passar para o papel elementos sobre assuntos tão diversos como o enterro da rainha-mãe, as seitas, as superstições e sacrifícios na China e, depois, avançar no campo militar, político e administrativo da China, com uma descrição pormenorizada dos cargos e funções do governo, autoridades e das insígnias dos mandarins. Não esquece, tão pouco, o sistema prisional chinês e as guerras que os tártaros moveram contra a China.
Esta primeira parte, Do Estado Temporal da China, constitui, pois, um retrato em grande dimensão e com uma visão multidisciplinar, iluminista, do Celeste Império.
Percebe-se, melhor, claramente, pela sua leitura, o grande alcance, o mediático impacto que causou na Europa do século XVII esta obra, a todos os títulos pioneira, do Padre Álvaro Semedo.
A segunda parte do livro Na Qual se Trata da Cristandade da China, é um relato, circunstanciado da presença europeia, evangelizadora, na China. É a história, principalmente dos missionários jesuítas, a sua vida, as perseguições, os maus-tratos, o que tiveram de suportar por amor e dedicação a uma causa maior, razão principal das suas vidas. Mas há também registos dos progressos e das pequenas vitórias alcançadas.
Pela imagem documental que nos oferece da China do séc. XVII, a nível do poder, reproduzimos o Testamento do Imperador Vanlio (Página 162):
 "Testamento do nosso Imperador Vanlio*, o qual, obedecendo ao Céu, depôs o seu Império nas mãos dos pósteros
 Eu, desde criança que assumi o governo desta Monarquia, recebendo-o das mãos dos meus maiores e conservei-o durante 48 anos, tempo assaz longo. Não há, por isso, motivo para me lamentarem, por agora ter de o deixar. Logo que fui elevado a imperador me dispus pretender governar bem e imitar os meus predecessores assim como procurei, também, proceder com toda a exactidão. Porém, impedido por várias enfermidades, durante muitos anos, tive de procurar quem fizesse os costumados sacrifícios aos Céus e à Terra, mas não deixei de celebrar os devidos ofícios à memória dos meus maiores. Raríssimas vezes me assentei no trono para ponderar as coisas do reino. Demoraram-se os memoriais que me foram apresentados sem o despachar. Não me ocupou o pensamento nomear, segundo as necessidades, os magistrados do reino. Sei, porém, agora, que existem alguns de menos. Abri novas minas de oiro e prata; acrescentei e multipliquei os impostos; perturbei a paz pública com tumultos de guerra dos quais resultaram agravos para o povo e discórdias com os príncipes vizinhos. Pensando a toda a hora, dia e noite, nestas coisas, só pude sofrer a dor a dor de alma que detesta todas as culpas passadas, e, assim, principiei, finalmente, a ter melhores pensamentos, mas caí nesta enfermidade, que vai aumentando tanto, que me faz crer dever perder, rapidamente, a vida.
Portanto, resta-me a única esperança de que os meus filhos e sobrinhos hão-de emendar as minhas faltas, levando uma vida melhor.

Vós, pois, herdeiro do reino, já que não vos faltais engenho nem boa índole e porque até agora não tivestes nunca esquecido o exercício da piedade, obediência e outras virtudes, tende grande ânimo. É vossa a herança do Império Chinês. Tende, por objectivo principal, o compor a vida e os vossos costumes. Aplicai-vos com toda a diligência, ao bom governo do reino. Amai os bons; não recusai os conselhos; não tomai por mal os avisos para que possais suportar bem o grande peso deste império. Esforçai por que o vosso filho e os meus sobrinhos se apliquem aos estudos com toda a diligência. Querei bem aos vossos três irmãos; destinai-lhes compartimentos cómodos e provede bons rendimentos a cada um e mesas honradas. fazei diligência para que todos os vossos súbditos, nobres e ignóbeis, andem em paz e amem a concórdia. Tomai, logo, em mente, fazer colaos a outros supremos magistrados, porque verifico ter esquecido dois nomes, na devida ocasião, e não me esqueci de eleger os administradores régios. Estas coisas vos recomendo para que diligencieis pôr, quanto antes, em execução.
Aboli, de qualquer modo e imediatamente, os novos impostos de pontes, campos, seda, panos, vasos de argila e outras coisas que eu introduzi, recentemente. Fazei que despachem com diligência juízes escolhidos para todas as causas que se encontram nos tribunais e libertai os inocentes. Nos confins da Tartária faltam provisões para os soldados; supri-lhes, imediatamente, da tesouraria imperial (dizem que esta última coisa foi acrescentada pelo príncipe ao testamento do pai). Que sejam recomendados os soldados e os capitães que morreram na última guerra. Honrai os seus sepulcros e as suas almas com novos títulos; subvencionai as suas famílias com as pagas devidas.
Tudo isto sumariamente vos ordeno que procureis efectuar quanto antes possível.
Quanto ao meu funeral fazei que se observem as cerimónias do reino. É verdade que, por meu gosto, estimaria que, em lugar de durar, segundo o costume, 27 meses, dure, somente, outros tantos dias. Todos os magistrados, vice-reis, visitadores, capitães de guerra terão necessidade de assistir aos seus governos e administrações; não permiti que sejam chamados, por causa do meu funeral. Bastará que cada um, quando receber a notícia da minha morte, faça com que se observe, onde se encontre e durante três dias, aquilo que se há-de fazer no funeral do corpo dum rei. As pastilhas e outros perfumes que costumam enviar-se em semelhantes ocasiões poderão ser trazidas por autoridades inferiores em nome das superiores. Porém, os magistrados eleitos pelo governo para as fortalezas e presídios das cidades e das terras não virão de forma alguma. São ainda escusados os tributários estrangeiros do reino. Ordeno que esta minha última vontade seja publicada em todo o reino e que chegue aos ouvidos de todos.
Mán-Lek, (Vân-Li), (1573-1620)
IMAGENS
1 - Imagem de Álvaro Semedo
2 - Rua da Misericórdia ou dos Chouriços - actual Rua Cap. Pais de Morais, onde nasceu o padre Álvaro Semedo
3 - Zona F do Bairro da Cevadeira, artéria proposta para receber o nome do Padre Álvaro Semedo.
4 - Ruínas da Igreja de São Paulo (Macau) onde foi sepultado o Padre Álvaro Semedo
NOTAS
1- Palomo, Federico, - Fazer dos campos escolas excelentes - “Os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630)
2 – Guillemou, Alain – Os Jesuítas
3- Moura, Motta e – Memória Histórica da Notável Vila de Nisa
4- Semedo, Álvaro – Relação da Grande Monarquia da China
5 – Oliveira, Fernando Correia de – 500 Anos de Contactos Luso-Chineses
ANEXO
Deliberação camarária por cumprir
A Câmara Municipal de Nisa, na reunião de 7 de Junho de 2006 aprovou por unanimidade a atribuição do nome do Padre Álvaro Semedo à (ainda) actual Zona F do Bairro da Cevadeira.
Tarda a perpetuar com a honra e o brio que merece, o nome de Álvaro Semedo na toponímia de Nisa. Para que não restem dúvidas transcrevemos a parte da acta referente ao ilustre nisense:
Acta 12 – Reunião de 7 de Junho de 2006
Relativamente ao assunto a que acima se faz referência, tendo em conta o número de novas edificações erigidas, bem como a criação de algumas urbanizações, tanto em Nisa como um pouco por todo o concelho e tendo-se a consciência que é necessário disciplinar a toponímia e conforme conteúdo da Informação/ Proposta Nº 145/06, datada do dia 8 de Março do ano em urso, da Divisão de Projectos e Urbanismo, cuja cópia fica arquivada em pasta anexa à presente acta, a Câmara reunida aprova, por unanimidade e após pareceres das respectivas Juntas de Freguesia, a atribuição de nomes e numeração de polícia às ruas, largos, praças e urbanizações das localidades a seguir indicadas:
(...) Na Urbanização da Cevadeira (...) à actual Zona F, será atribuído o nome de “Rua Padre Álvaro Semedo”.
Oito anos passados esta deliberação e muitas outras referentes a nomes de ruas estão por cumprir. Até quando?
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 29/1/2014