4.2.14

ÁLVARO SEMEDO: Um jesuíta nisense na China (I)

Apontado como o “introdutor do chá na Europa”
É uma das figuras de maior projecção cultural e religiosa que nasceram em Nisa, ainda hoje, infelizmente, desconhecida de grande parte dos filhos desta “terra bordada de encantos”. O presente trabalho, dividido em duas partes, mais não pretende do que fazer um pouco de luz sobre a vida e o percurso oriental deste nosso conterrâneo.
 O jesuíta e orientalista
Álvaro Semedo, nasceu em Nisa, vila do Alto Alentejo, na rua da Misericórdia, no ano de 1585. Foram seus pais, Fernão Gomes e Leonor Vaz que lhe deixaram grande fortuna, acrescida ainda pelos bens do tio, Álvaro Semedo, o Velho. Podia, por isso, gozar os prazeres de vida fácil, mas preferiu-lhes os atractivos dos estudos e as superiores aliciações do saber e do conhecimento.
Ruma a Évora, com apenas 17 anos e ingressa na Companhia de Jesus (Jesuítas). Estuda no colégio da Ordem, e em 1608, contando 23 anos, seguiu para a Índia, onde conclui os seus estudos teológicos, em Goa. Em 1613, foi enviado para a China onde adopta o nome nativo de Sé Mou – Iôk e se fixa em Nanquim, cidade na qual começa a dedicar-se ao estudo da língua chinesa, conhecimento que lhe seria indispensável para poder prosseguir com êxito o seu trabalho de evangelização.
Em Nanquim, no ano de 1617, os elementos da nova cristandade foram alvo de feroz perseguição e sobre o seu catequizador mais se encarniçou a fúria demoníaca. Álvaro Semedo, doente, foi encarcerado e submetido a tratos desumanos. Chegaram a encerrá-lo numa gaiola de ferro, onde não podia estender e acomodar o corpo, nem mudar de posição. Nessa gaiola o fizeram seguir para Cantão e dali para Macau. Mas, logo que recuperou alento, volta a Nanquim, disposto a continuar a sua missão de evangelizador.
Tão bem desempenhou as suas funções que foi nomeado Procurador da sua Ordem em Roma e por esse motivo regressou a Portugal a fim de receber instruções que o habilitassem ao desempenho do novo e honroso cargo.
Cumprida a missão que o levara à Cidade Eterna, partiu para a China mais uma vez, mas, agora, incumbido de nova e mais importante missão, a de Provincial e Visitador de todas as Missões.
E, nessas longínquas paragens, onde S. João de Brito colheu a palma do martírio, se finou o ínclito filho de Nisa, a 6 de Maio de 1658, com setenta e três anos de idade, e quarenta e seis de missionário.
Está sepultado em Macau (Cemitério Velho), segundo informa o padre Philipe Couplet no “Catalogus Societatis Jesu...”, pág.17, nº XXV.
Álvaro Semedo era muito versado em assuntos de história e teologia. Orador de grande mérito, possuía uma variada gama de recursos de persuasão, que utilizava com saber e medida para dominar os auditórios.
João Soares de Brito, no Teatro Lusitano, e António de Leão, na Biblioteca Oriental, descrevem-no, fisicamente, como “homem de baixa estatura, cheio de cara, olhos castanhos”, etc.
As obras que deixou à posteridade, dão público testemunho da sua erudição, nomeadamente, Cartas Anuais”, escritas no ano de 1622, em Nanquim, sobre as missões na China; a História do Império da China, a sua obra mais conhecida e que conheceu vários títulos, tendo de permeio, a sua publicação, uma outra história com ressaibos de “atribulada”, como explicaremos mais adiante.
A História do Império da China ou A Relação da Grande Monarquia da China, foi traduzida em castelhano (e apresentada como obra escrita nesta língua) por Manuel de Faria e Sousa, em italiano por Hermano Schens, em francês pelo Pe. Luís Cullon, e ainda em inglês.
A morte surpreendeu Álvaro Semedo quando tinha já bastante adiantados os dicionários Sínico-Lusitano e Lusitano-Sínico, talvez a primeira grande tentativa de sistematizar o léxico usado pelos dois povos, europeu e asiático.
Referem-se de forma altamente elogiosa a este notável e sábio missionário, Diogo Barbosa, na Biblioteca Lusitana; Manuel de Faria e Sousa, na Ásia Portuguesa; o Pe António de Gouveia, na Ásia Extrema; e João Soares de Brito, António de Leão e Manuel Severim de Faria, nas obras já citadas.
A introdução do chá na Europa
Para além dos méritos como missionário, investigador e escritor, ao Padre Álvaro Semedo é ainda atribuída a introdução do chá na Europa. Vários historiadores defendem este ponto de vista e Joaquim de Montezuma de Carvalho, num interessante artigo publicado no jornal Figueirense (Figueira da Foz, 26/7/1988), refere:
“Antes de D. Filipa de Lencastre reinar no tôsco reduto de nossos hábitos, comia-se à mão... Diz um irmão meu que foi D. Filipa que introduziu na corte lusa o simples garfo. Acredito. Há que temperar, assim, o juízo peremptório de Aquilino Ribeiro no seu retrato sobre El-rei D. João III, quando escreve: - “No reinado de D. Manuel tirava-se ainda comida das prateiras e almofias com os cinco dedos, e para limpar as mãos enlabuzadas lá estavam à beira dos convivas os alões, podengos e fradilqueiros de pêlo felpudo”. O reinado de D. Manuel ocorre um século depois do reinado de boas maneiras de D. Filipa de Lencastre... Cem anos não tinham bastado para o garfo se espetar bem nos hábitos nossos?
Diz-se que foi a Infanta D. Catarina quem levou para Inglaterra a “moda” de tomar chá... De concreto, não se sabe. Mas sabe-se, isso sim, que uma das primeiras referências ao comércio do chá, em Inglaterra, se encontra numa carta de um comerciante para o seu agente em Macau, datada de 1615.
Sobre o chá, escreveu, também, numa edição japonesa intitulada “O Culto do Chá” (Kobe, Japão, 1905), um dos “nossos” primeiros sinólogos: Wenceslau de Morais, a quem chamavam, o “Portugaru-San” (ou seja, o Senhor Portugal).
Não sabemos se Wenceslau de Morais cita o Padre Álvaro Semedo... Há quem defenda que se deve ao padre Gaspar da Cruz, missionário português, a primeira menção sobre o chá, na Europa, numa publicação do ano 1560.
Por outro lado, o juízo mais corrente é o de que o comércio e introdução do uso da bebida do chá na Europa deve-se, especialmente, a ingleses e holandeses. O que conhecemos é que, em tudo, até nos hábitos há sempre um princípio. E aqui é que funciona a primor o padre Álvaro Semedo.
Este português de extraordinário mérito nasceu na Vila de Nisa, Alentejo, em 1585 e faleceu em Cantão, China, em 18 de Julho de 1658, mas achando-se o seu corpo enterrado em Macau. Fez estudos humanísticos na Universidade de Évora e largou como missionário, para o Oriente. Goa, aonde chegou em 1608, foi o primeiro campo de ensaios. Depois, experiente, em 1613, avançou este jesuíta rumo à imensidão do Império da China. Era um dos que queria evangelizar o Dragão. E, para estudar o Dragão, teve olhos que fatigaram os mais inadvertidos esconderijos daquela maneira de ser uma tão diversa civilização. Viu, escreveu. O resultado foi um fascinante livro de realidades que se pareceram com o sonho e que o findar deste século deveria redescobrir agora que os povos da iniciativa pretérita estão a apresentar seus saldos... Este positivo saldo com a China poucos concorrentes tem.
O Padre Álvaro Semedo, lá no Oriente, andava saudoso de Portugal. Tinha de ir a Roma. Em 1640 chega a Lisboa e, em 1642, a Roma. Ao passar por Madrid, conhece o português Manuel de Faria e Sousa (1590 – 1649), polígrafo relacionado com todo o mundo culto e as imprensas. O convívio entre ambos foi frutuoso. O Padre Semedo era o manancial, trazia papéis. Creio, porém, que foi Faria e Sousa quem lapidou o diamante bruto, o ordenou, tendo sempre a seu lado, num trabalho a dois, o dialogante padre Semedo. É que Faria e Sousa ao explicitar que o livro é “sacado de las notícias del padre Alvaro Semedo”, está a enunciar o seu trabalho de revisão que não apenas o de tradutor de língua portuguesa (a do manuscrito) para a língua castelhana. Ou antes, trabalho de co-autoria já que o verbo é passado de realidade. Quer o prólogo de Padre Semedo quer o de Faria e Sousa apontam para essa estreita colaboração entre os dois. A obra não deixa, assim, de ser também de... Faria e Sousa! E pressinto um árduo trabalho entre os dois, um trabalho a vapor: que o Padre Semedo desejará levar o livro, impresso, para Roma! E tudo bate certo. O laborioso Faria e Sousa não desapontava ninguém. O livro é impresso, em Madrid, no ano de 1641. Se no amorfo original se intitulava “Relação da Propagação da Fé no Reyno da China e outros adjacentes”, em castelhano conhecido ficará por “Imperio de la China y Cultura Evangelica en el, por los religiosos de la Compañia de Jesus. Sacado de las noticias del padre Alvaro Semedo de la propria Compañia, por Manoel de Faria y Sousa, cavallero de la Orden de Christo, y de la Casa Real”.
É um continente de imensos dados sobre a história, a geografia, os povos e os costumes da plural China. Sei como Faria e Sousa trabalhava. Tinha um poder genial de coordenar as matérias, situá-las, aparentá-las. Daí que no final dos seus trabalhos (os editados, os que só existem em manuscritos) surjam essas lapidares radiografias que são as “tablas”, os elucidativos índices. Nesse continente de dados não nos perdemos e, muito pelo contrário, rapidamente se alcança o desejado. Parece que Faria e Sousa adivinhava o preguiçoso futuro.
Em 1641, a língua imperial era o castelhano. A obra sai em castelhano... Porém, logo em 1643 é traduzida para o italiano. As traduções francesas começam a surgir depois de 1667. As inglesas haviam iniciado o seu circuito em 1655... O livro de Padre Semedo e Faria e Sousa, teve uma afamada e merecida auréola de larga difusão no mundo ávido de conhecer mais mundo. Na própria Espanha, a obra é reeditada em 1642.
Ora o dr. Bretschneider afirmou no seu estudo “Early European Recerche in tho the flora of China” (Xangai, 1881, pg. 7) que foi o Padre Semedo o primeiro de todos os europeus que deu a conhecer o chá, a sua preparação e a sua utilidade.
Até prova em contrário (pelo menos a nível de prova impressa) há que reputar o Padre Semedo como o primeiro de todos os europeus que, na verdade, presta cuidada atenção ao chá como bebida nacionalizada pelo costume no Império da China e lhe aponta a graça dos benefícios, quase ao estilo publicitário dos nossos dias. O Padre Álvaro Semedo parece fazer o reclamo do produto, tal a virtude das excelências que lhe aponta.
O famoso “Império de la China Cultura Evangelica em el” teve reedição, em Portugal, em 1731 (Lisboa Occidental, el la officina Herreriana. MDCCXXXI. Con las licencias necessarias). Com a cota 11-39-6 fui encontrar o precioso e esquecido exemplar (quem o mergulhará no banho da língua portuguesa?) na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa. O bem conservado exemplar pertenceu à Livraria do Convento de Nossa Senhora de Jesus, de Lisboa. Com a obra na mão, pude verificar que o Padre Semedo dedica a obra ao Padre Xavier e que Faria e Sousa o faz a D. Marcelino de Faria y Guzman. No seu breve prólogo escreve Faria e Sousa: - “es el Padre Alvaro Semmedo, português de nacion; y de noble nacimiento, como lo promete el apellido, que es de aquel valeroso Cavallero Giraldo Sempavor...”
Foi fácil encontrar o chá nesta obra de mil dados do padre Semedo... No índice lá vem referido “chá, yerva notable, 19”. Na página 19 lá vem o texto que deixamos na íntegra, com uma advertência: chá em castelhano diz-se e escreve-se té, que é uma forma de pronunciar o tscha em certas províncias chinesas. A curiosa advertência está em que Faria e Sousa não traduz chá para té (sinal de que em Espanha ainda não existia o costume de beber...té?). Eis parte do trecho:
Desta misma Provincia sale otra cafila para el Reyno del poderoso Tibet. Lleva cosas varias, y en particular telas de seda, porcelana, y chá. Chá es hoja de um arbol parecido al Arrayan, pero en algunas Provincias del tamaño de uma Albahaca, y en otras como Granados pequeños. Secanla sobre el fuego en caços de hierro, adonde se une, y congloba. (…)
Na recente obra “Viagens na Ásia Central em demanda do Catraio: Bento de Goes e António de Andrade”, com introdução e notas de Neves Aguas (ed. Pub. Europa- América, Lisboa, 1988, 126 pgs.) vem a ligeira referência (a pág. 66) à “Relação da Grande Monarquia da China” do Padre Álvaro Semedo, I volume, traduzido do italiano por Luís G. Gomes, Noticias de Macau, 1956. Com este laconismo, julgamos tratar-se da tradução parcial do “Império de la China”, depois do castelhano ter sido castigado no italiano...
Sim, impõe-se que o livro que se conserva na Academia das Ciências de Lisboa seja inteiramente vertido do castelhano (aportuguesado de Faria de Sousa!) para o português deste findar de século e comemorações...
 O filho de Nisa, este andarilho Padre Álvaro Semedo (regressaria à China em 1645), não é o último imperador da China, o dos relatos primorosos, mas o primeiro: com a larga noticia sua sobre o chá, ganhou ele perdurável trono na estima da memória que sabemos ser o rio na torrente plural das coisas.”
E, mais não disse Montezuma de Carvalho.
 Mário Mendes in "Alto Alentejo - 15/1/2014
Identificação das imagens
1 - Imagem de Álvaro Semedo
2 - Ruínas da Igreja de S. Paulo (Macau) em cujo cemitério foi sepultado o padre Álvaro Semedo
3 - Estela nestoriana descoberta por Álvaro Semedo, conforme descrição de Oliveira Martins no site do Centro Nacional de Cultura.
4 - Interior de "Imperio de la China i Cvltvra Evangelica" (título em castelhano da "Relação..."