Apontado como o “introdutor do
chá na Europa”
É uma das figuras de
maior projecção cultural e religiosa que nasceram em Nisa, ainda hoje,
infelizmente, desconhecida de grande parte dos filhos desta “terra bordada de
encantos”. O presente trabalho, dividido em duas partes, mais não pretende do
que fazer um pouco de luz sobre a vida e o percurso oriental deste nosso
conterrâneo.
O jesuíta e
orientalista
Álvaro Semedo, nasceu em Nisa, vila do Alto Alentejo, na rua
da Misericórdia, no ano de 1585. Foram seus pais, Fernão Gomes e Leonor Vaz que
lhe deixaram grande fortuna, acrescida ainda pelos bens do tio, Álvaro Semedo,
o Velho. Podia, por isso, gozar os prazeres de vida fácil, mas preferiu-lhes os
atractivos dos estudos e as superiores aliciações do saber e do conhecimento.
Ruma a Évora, com apenas 17 anos
e ingressa na Companhia de Jesus (Jesuítas). Estuda no colégio da Ordem, e em
1608, contando 23 anos, seguiu para a Índia, onde conclui os seus estudos
teológicos, em Goa. Em
1613, foi enviado para a China onde adopta o nome nativo de Sé Mou – Iôk e se
fixa em Nanquim, cidade na qual começa a dedicar-se ao estudo da língua
chinesa, conhecimento que lhe seria indispensável para poder prosseguir com
êxito o seu trabalho de evangelização.
Em Nanquim, no ano de 1617, os
elementos da nova cristandade foram alvo de feroz perseguição e sobre o seu
catequizador mais se encarniçou a fúria demoníaca. Álvaro Semedo, doente, foi
encarcerado e submetido a tratos desumanos. Chegaram a encerrá-lo numa gaiola
de ferro, onde não podia
estender e acomodar o corpo, nem mudar de posição. Nessa gaiola o fizeram
seguir para Cantão e dali para Macau. Mas, logo que recuperou alento, volta a
Nanquim, disposto a continuar a sua missão de evangelizador.
Tão bem desempenhou as suas
funções que foi nomeado Procurador
da sua Ordem em Roma e por esse motivo regressou a Portugal a fim de receber
instruções que o habilitassem ao desempenho do novo e honroso cargo.
Cumprida a missão que o levara à
Cidade Eterna, partiu para a China mais uma vez, mas, agora, incumbido de nova
e mais importante missão, a de Provincial
e Visitador de todas as Missões.
E, nessas longínquas paragens,
onde S. João de Brito colheu a
palma do martírio, se finou o ínclito filho de Nisa, a 6 de Maio de 1658, com
setenta e três anos de idade, e quarenta e seis de missionário.
Está sepultado em Macau
(Cemitério Velho), segundo informa o padre Philipe Couplet no “Catalogus
Societatis Jesu...”, pág.17, nº XXV.
Álvaro Semedo era muito versado
em assuntos de história e teologia. Orador de grande mérito, possuía uma
variada gama de recursos de persuasão, que utilizava com saber e medida para
dominar os auditórios.
João Soares de Brito, no Teatro
Lusitano, e António de Leão, na Biblioteca Oriental, descrevem-no,
fisicamente, como “homem de baixa estatura, cheio de cara, olhos castanhos”,
etc.
As obras que deixou à
posteridade, dão público testemunho da sua erudição, nomeadamente, Cartas Anuais”, escritas no ano de 1622,
em Nanquim, sobre as missões na China; a História do Império da China, a sua
obra mais conhecida e que conheceu vários títulos, tendo de permeio, a sua
publicação, uma outra história com ressaibos de “atribulada”, como explicaremos
mais adiante.
A História do Império da China
ou A Relação da Grande Monarquia da China, foi traduzida em castelhano
(e apresentada como obra escrita nesta língua) por Manuel de Faria e Sousa, em
italiano por Hermano Schens, em francês pelo Pe. Luís Cullon, e ainda em
inglês.
A morte surpreendeu Álvaro Semedo
quando tinha já bastante adiantados os dicionários Sínico-Lusitano e Lusitano-Sínico,
talvez a primeira grande tentativa de sistematizar o léxico usado pelos dois
povos, europeu e asiático.
Referem-se de forma altamente
elogiosa a este notável e sábio missionário, Diogo Barbosa, na Biblioteca
Lusitana; Manuel de Faria e Sousa, na Ásia
Portuguesa; o Pe António de Gouveia, na Ásia
Extrema; e João Soares de Brito, António de Leão e Manuel Severim de Faria,
nas obras já citadas.
A introdução do chá na Europa
Para além dos méritos como missionário, investigador
e escritor, ao Padre Álvaro Semedo é ainda atribuída a introdução do chá na
Europa. Vários historiadores defendem este ponto de vista e Joaquim de
Montezuma de Carvalho, num interessante artigo publicado no jornal Figueirense
(Figueira da Foz, 26/7/1988), refere:
“Antes de D. Filipa de Lencastre
reinar no tôsco reduto de nossos hábitos, comia-se à mão... Diz um irmão meu
que foi D. Filipa que introduziu na corte lusa o simples garfo. Acredito. Há
que temperar, assim, o juízo peremptório de Aquilino Ribeiro no seu retrato
sobre El-rei D. João III, quando escreve: - “No reinado de D. Manuel tirava-se
ainda comida das prateiras e almofias com os cinco dedos, e para limpar as mãos
enlabuzadas lá estavam à beira dos convivas os alões, podengos e fradilqueiros
de pêlo felpudo”. O reinado de D. Manuel ocorre um século depois do reinado de
boas maneiras de D. Filipa de Lencastre... Cem anos não tinham bastado para o
garfo se espetar bem nos hábitos nossos?
Diz-se que foi
a Infanta D. Catarina quem levou para Inglaterra a “moda” de tomar chá... De
concreto, não se sabe. Mas sabe-se, isso sim, que uma das primeiras referências
ao comércio do chá, em Inglaterra, se encontra numa carta de um comerciante
para o seu agente em Macau, datada de 1615.
Sobre o chá,
escreveu, também, numa edição japonesa intitulada “O Culto do Chá” (Kobe,
Japão, 1905), um dos “nossos” primeiros sinólogos: Wenceslau de Morais, a quem
chamavam, o “Portugaru-San” (ou seja, o Senhor Portugal).
Não sabemos se
Wenceslau de Morais cita o Padre Álvaro Semedo... Há quem defenda que se deve
ao padre Gaspar da Cruz, missionário português, a primeira menção sobre o chá,
na Europa, numa publicação do ano 1560.
Por outro
lado, o juízo mais corrente é o de que o comércio e introdução do uso da bebida
do chá na Europa deve-se, especialmente, a ingleses e holandeses. O que
conhecemos é que, em tudo, até nos hábitos há sempre um princípio. E aqui é que
funciona a primor o padre Álvaro Semedo.
Este português de extraordinário
mérito nasceu na Vila de Nisa, Alentejo, em 1585 e faleceu em Cantão, China, em
18 de Julho de 1658, mas achando-se o seu corpo enterrado em Macau. Fez estudos
humanísticos na Universidade de Évora e largou como missionário, para o
Oriente. Goa, aonde chegou em 1608, foi o primeiro campo de ensaios. Depois,
experiente, em 1613, avançou este jesuíta rumo à imensidão do Império da China.
Era um dos que queria evangelizar o Dragão. E, para estudar o Dragão, teve
olhos que fatigaram os mais inadvertidos esconderijos daquela maneira de ser
uma tão diversa civilização. Viu, escreveu. O resultado foi um fascinante livro
de realidades que se pareceram com o sonho e que o findar deste século deveria
redescobrir agora que os povos da iniciativa pretérita estão a apresentar seus
saldos... Este positivo saldo com a China poucos concorrentes tem.
O Padre Álvaro Semedo, lá no
Oriente, andava saudoso de Portugal. Tinha de ir a Roma. Em 1640 chega a Lisboa
e, em 1642, a
Roma. Ao passar por Madrid, conhece o português Manuel de Faria e Sousa (1590 –
1649), polígrafo relacionado com todo o mundo culto e as imprensas. O convívio
entre ambos foi frutuoso. O Padre Semedo era o manancial, trazia papéis. Creio,
porém, que foi Faria e Sousa quem lapidou o diamante bruto, o ordenou, tendo
sempre a seu lado, num trabalho a dois, o dialogante padre Semedo. É que Faria
e Sousa ao explicitar que o livro é “sacado de las notícias del padre Alvaro
Semedo”, está a enunciar o seu trabalho de revisão que não apenas o de tradutor
de língua portuguesa (a do manuscrito) para a língua castelhana. Ou antes,
trabalho de co-autoria já que o verbo é passado de realidade. Quer o prólogo de
Padre Semedo quer o de Faria e Sousa apontam para essa estreita colaboração
entre os dois. A obra não deixa, assim, de ser também de... Faria e Sousa! E
pressinto um árduo trabalho entre os dois, um trabalho a vapor: que o Padre
Semedo desejará levar o livro, impresso, para Roma! E tudo bate certo. O
laborioso Faria e Sousa não desapontava ninguém. O livro é impresso, em Madrid,
no ano de 1641. Se no amorfo original se intitulava “Relação da Propagação da Fé no Reyno da China e outros adjacentes”,
em castelhano conhecido ficará por “Imperio de la China y Cultura Evangelica
en el, por los religiosos de la
Compañia de Jesus. Sacado de las noticias del padre Alvaro
Semedo de la propria Compañia, por Manoel de Faria y Sousa, cavallero de la Orden de Christo, y de la Casa Real ”.
É um continente de imensos dados
sobre a história, a geografia, os povos e os costumes da plural China. Sei como
Faria e Sousa trabalhava. Tinha um poder genial de coordenar as matérias,
situá-las, aparentá-las. Daí que no final dos seus trabalhos (os editados, os
que só existem em manuscritos) surjam essas lapidares radiografias que são as
“tablas”, os elucidativos índices. Nesse continente de dados não nos perdemos
e, muito pelo contrário, rapidamente se alcança o desejado. Parece que Faria e
Sousa adivinhava o preguiçoso futuro.
Em 1641, a língua imperial era
o castelhano. A obra sai em castelhano... Porém , logo em 1643 é traduzida
para o italiano. As traduções francesas começam a surgir depois de 1667. As
inglesas haviam iniciado o seu circuito em 1655... O livro de Padre Semedo e
Faria e Sousa, teve uma afamada e merecida auréola de larga difusão no mundo
ávido de conhecer mais mundo. Na própria Espanha, a obra é reeditada em 1642.
Ora o dr.
Bretschneider afirmou no seu estudo “Early European Recerche in tho the flora
of China” (Xangai, 1881, pg. 7) que foi o Padre Semedo o primeiro de todos os
europeus que deu a conhecer o chá, a sua preparação e a sua utilidade.
Até prova em
contrário (pelo menos a nível de prova impressa) há que reputar o Padre Semedo
como o primeiro de todos os europeus que, na verdade, presta cuidada atenção ao
chá como bebida nacionalizada pelo costume no Império da China e lhe aponta a
graça dos benefícios, quase ao estilo publicitário dos nossos dias. O Padre
Álvaro Semedo parece fazer o reclamo do produto, tal a virtude das excelências
que lhe aponta.
O famoso “Império
de la China Cultura
Evangelica em el” teve reedição, em Portugal, em 1731 (Lisboa Occidental, el la
officina Herreriana. MDCCXXXI. Con las licencias necessarias). Com a cota
11-39-6 fui encontrar o precioso e esquecido exemplar (quem o mergulhará no
banho da língua portuguesa?) na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
O bem conservado exemplar pertenceu à Livraria do Convento de Nossa Senhora de
Jesus, de Lisboa. Com a obra na mão, pude verificar que o Padre Semedo dedica a
obra ao Padre Xavier e que Faria e Sousa o faz a D. Marcelino de Faria y Guzman.
No seu breve prólogo escreve Faria e Sousa: - “es el Padre Alvaro Semmedo, português de nacion; y de noble nacimiento,
como lo promete el apellido, que es de aquel valeroso Cavallero Giraldo
Sempavor...”
Foi fácil
encontrar o chá nesta obra de mil dados do padre Semedo... No índice lá vem
referido “chá, yerva notable, 19” .
Na página 19 lá vem o texto que deixamos na íntegra, com uma advertência: chá
em castelhano diz-se e escreve-se té, que é uma forma de pronunciar o tscha em
certas províncias chinesas. A curiosa advertência está em que Faria e Sousa não
traduz chá para té (sinal de que em Espanha ainda não existia o costume de
beber...té?). Eis parte do trecho:
“Desta misma Provincia sale otra cafila para el Reyno del poderoso
Tibet. Lleva cosas varias, y en particular telas de seda, porcelana, y chá. Chá
es hoja de um arbol parecido al Arrayan, pero en algunas Provincias del tamaño
de uma Albahaca, y en otras como Granados pequeños. Secanla sobre el fuego en
caços de hierro, adonde se une, y congloba. (…)
Na recente obra “Viagens na Ásia
Central em demanda do Catraio: Bento de Goes e António de Andrade”, com
introdução e notas de Neves Aguas (ed. Pub. Europa- América, Lisboa, 1988, 126
pgs.) vem a ligeira referência (a pág. 66) à “Relação da Grande Monarquia da
China” do Padre Álvaro Semedo, I volume, traduzido do italiano por Luís G.
Gomes, Noticias de Macau, 1956. Com este laconismo, julgamos tratar-se da
tradução parcial do “Império de la
China ”, depois do castelhano ter sido castigado no
italiano...
Sim, impõe-se que o livro que se
conserva na Academia das Ciências de Lisboa seja inteiramente vertido do
castelhano (aportuguesado de Faria de Sousa!) para o português deste findar de
século e comemorações...
O filho de Nisa, este andarilho Padre Álvaro
Semedo (regressaria à China em 1645), não é o último imperador da China, o dos
relatos primorosos, mas o primeiro: com a larga noticia sua sobre o chá, ganhou
ele perdurável trono na estima da memória que sabemos ser o rio na torrente
plural das coisas.”
E, mais não disse Montezuma de
Carvalho.
Identificação das imagens
1 - Imagem de Álvaro Semedo
2 - Ruínas da Igreja de S. Paulo (Macau) em cujo cemitério foi sepultado o padre Álvaro Semedo
3 - Estela nestoriana descoberta por Álvaro Semedo, conforme descrição de Oliveira Martins no site do Centro Nacional de Cultura.
4 - Interior de "Imperio de la China i Cvltvra Evangelica" (título em castelhano da "Relação..."