19.4.20

OPINIÃO: A pobreza mata

A ONU estima que 42 a 66 milhões de crianças caiam na pobreza devido às consequências económicas da pandemia, podendo "centenas de milhares" acabar por morrer ainda este ano.
A confirmar-se, o cenário anula os progressos obtidos em todo o Mundo, nos últimos anos, na redução da mortalidade infantil.
Os números podem soar frios, longínquos até, mas os sinais sentem-se à nossa porta. No Marquês, o projeto "Porto Solidário" está a entregar cerca de 400 refeições por dia e sentiu a procura de ajuda duplicar a partir de meados de março. Idêntica pressão sofreu em Lisboa a Junta de Freguesia de Arroios, que diariamente oferece alimentos ou refeições prontas a 300 pessoas. É fácil de imaginar como estão os bolsos de muitos portugueses olhando para as estatísticas: são já mais de 930 mil os trabalhadores em lay-off e 353 mil os contabilizados no desemprego, levando a taxa a subir acima dos 10%.
Se há argumento falacioso, na insistência em contrapor a vida à economia como se a escolha fosse alguma vez essa, é considerar que na preservação do emprego não há mais do que dinheiro a falar. Num primeiro momento, a luta pela sobrevivência obrigou-nos a parar. Agora, a retoma é igualmente uma questão de sobrevivência. A pobreza mata, objetiva e factualmente.
Sabemos que o regresso à atividade terá de ser progressivo e cuidadoso, sob risco de causar danos inesperados. Mas um dos maiores perigos é reabrirmos comércio e serviços sem que a população se sinta segura para os frequentar. Voltar a ir a um cabeleireiro ou a uma loja de roupa pode parecer uma escolha individual, mas é coletivamente mais do que isso. É impensável que alguém possa temer o vírus, mas sentir-se tranquilo com o facto de haver milhares de famílias em sofrimento. A solidariedade tem muitas formas, mas falta de empatia não é nenhuma delas.
Inês Cardoso  in "Jornal de Notícias" - 18/4/2020