15.4.20

NISA: Textos de Carlos Tomás Cebola (I) - Rapsódia

RAPSÓDIA 
Naquela tarde, Mestre Horácio era um homem feliz. Tudo correra, afinal, melhor do que, tantas vezes, tinha imaginado. Tudo certinho. A tempo, sem sobressaltos, sem hesitações, sem falhas.
A alvorada, logo pela manhã, às oito. A procissão, com andores, anjinhos e fogaças, depois da missa do meio dia. O concerto, à meia tarde, pela força do calor. E se estava calor!
Mas, tudo, como Deus com os Santos.
Antes de sentar-se, puxou a cadeira um pouco mais para o lado: para a sombra, e gritou para dentro da tenda do Chumbinho, atrás de si.
"Rapaz, uma cerveja, por favor. Bem fresca".
Tirou o chapéu, que ajeitou, numa cadeira vaga. Passou o lenço pelas têmporas, perladas de suor. Limpou as mãos húmidas. Guardou o lenço no bolso das calças e esperou. Pouco tempo. O rapaz veio e colocou a bandeja, sobre a mesa, à sua frente.
"Uma cerveja".
Mestre Horácio agradeceu com um gesto e sorriu. Antes de levar a garrafa aos lábios,
respirou fundo. Duas vezes. De alívio, como quem, finalmente, atirava para longe um fardo
que, havia um mês, lhe pesava sobre os ombros. Um mês... Sim, pelo menos desde que ficara decidido incluir no programa a sua pequena rapsódia "Papoilas e Malmequeres". O facto nada teria de preocupante, se não fosse o Américo. O da tuba. Uma jóia de homem, aquele Américo, mas Música não era com ele, por mais que fizesse das fraquezas, força. O Américo, que até era um habilidoso, podia ter nascido para tudo: para músico, nunca. Verdade que não havia memória de ele ter faltado a uma lição, durante o solfejo; nem de ter falhado um ensaio, depois de lhe ter sido entregue o instrumento dos seus sonhos: a tuba.
"É só soprar e, para isso, tens tu arcaboiço!", gracejara a Vila, em coro. E ele, bonacheirão, rira do gracejo. Mas aprendeu. E foi para a estante. Segundo tuba, porque não havia terceiro.
De qualquer forma, ele merecera o prémio, mas o que começou a acontecer, também, foi que, a partir de então, era preciso estar, sempre, com um olho em todos e o outro no Américo, porque, de repente e sem cerimónias, zás, saía uma nota que não estava na pauta.
Pois, desde que, democraticamente, a Banda (direcção, sócios e músicos, incluídos), determinara que "Papoilas e Malmequeres" faria parte do programa do concerto, no Domingo de festa, Mestre Horácio não dormia sem pesadelos.
A ideia salvadora veio, numa noite de insónia e esteve em incubação até, quase, à hora do concerto.
"Com um bocadinho de sorte e de habilidade...", pensava ele. Mas, principalmente, teria de apanhar a tuba do Américo, sem que ele desse por tal e mesmo em cima da hora.
Felizmente, aconteceu. E, com uma rolha de cortiça, previamente, feita à medida, e um lenço de assoar, Mestre Horácio atulhou o tubo da tuba, de modo a que, por ele não saísse o mais leve som.
Ao subir para o coreto, foi só recomendar ao Américo que tocasse pianinho, quanto mais,
melhor, e dizer ao Abílio, o primeiro tuba, que tocasse por dois. Depois, havia de ser à vontade de Deus e, por isso, entregou-se nas mãos de Santa Cecília, que era a Santa da sua devoção.
Com o nervosismo, que, sempre, se apoderava do Américo, quando se sentava à estante, ele nem daria pela marosca. E não deu.
O concerto foi um êxito. A Banda esteve impecável do primeiro ao último acorde. Todos. Até o Américo. E, outra vez, Mestre Horácio sorriu. Levou a cerveja aos lábios e foi, nesse preciso momento, que apareceu a Dulce. Miúda endiabrada, aquela. Fina, que nem um coral. Esperta, até dizer basta. Aprendeu o solfejo, antes do á-é-i-ó-u. Passado um ano, à estante, já fazia oitos com o flautim, no dizer dos músicos mais velhos.
- "Boa tarde, Mestre Horácio!".
- "Olá, Dulce. Tu queres alguma coisa? Um refresco, um pirolito..."
- "Obrigada, Mestre. Eu só vim até aqui, porque tenho de dizer-lhe uma coisa".
- "E, também não queres sentar-te?"
- "Posso?"
- "Claro, claro. Senta-te e conta lá".
Depois de olhar, de uma ponta à outra, o Largo, que só então começava a despovoar-se, a
Dulce sentou-se numa cadeira mais próxima.
- "Com licença".
- "Então, que coisa tens tu para dizer-me?"
- "Promete que não conta a ninguém?"
- "Prometo".
- "Jura?".
- "A pés juntos".
A Dulce pareceu ficar satisfeita com o que ouviu. Voltou a olhar, atentamente, o Largo. Cruzou os braços sobre a mesa e debruçou-se até apoiar, neles, o queixo bem desenhado.
- "Senhor Mestre, esta tarde, alguém quis pregar uma partida ao meu pai".
- "Ora essa!".
- "Verdade".
- " E estás segura do que dizes?".
- "Tão certa, como eu chamar-me Dulce".
- "Vê lá bem que, nem sempre, as coisas são aquilo que parecem!".
A voz do Mestre, já de si grave, desceu mais uma oitava. A Dulce olhou-o sem mover um
único músculo da face. Continuou a fitá-lo, como se os seus olhos dissecassem, uma a uma, as rugas que se espalhavam pelo rosto do velho Mestre. Calada e misteriosa, como uma esfinge. Depois...
- "Foi como lhe disse. Alguém quis pregar uma partida ao meu pai".
- " E tu suspeitas de quem poderá ter sido?".
- " Não sei".
- "Mas, não sabes o quê? Não sabes se suspeitas ou não sabes se não suspeitas?".
- "Não, Mestre". Não sei se suspeito, se tenho a certeza".
-" E queres acusar alguém?".
- "Aí é que está o problema. Por vezes, estou mesmo a ver que...".
-"Cuidado. O padre António Vieira (sabes quem foi, pois sabes?), dizia que com os olhos do amor, o corvo é branco; com os olhos do ódio a pomba é negra. Tu estás a falar-me de qualquer coisa que fizeram ao teu pai. Pois, até pode acontecer que não estejas a ver, com os olhos certos. Trata-se do teu pai e a voz do sangue...".
-"Pode ser, mas eu...".
-"Olha. Eu não sei e tu, ainda, não disseste o que aconteceu, o que sabes ou do que suspeitas, que terá acontecido. Não sei, mas tenho a certeza de uma coisa. Ninguém, nesta Terra, é capaz de fazer, seja o que for, que possa magoar o Américo. O teu pai. Ninguém. Vai por mim!".
- "Isso eu sei. Mas também sei que o meu pai não tem jeito de acertar com a entrada do último andamento das "Papoilas e Malmequeres" e, se hoje, no concerto, acontecesse o que é costume, seria um grande desgosto para ele. Não é verdade, Mestre Horácio?"
- "É... E ele não merecia, pois não?".
- "Não, Mestre".
- "Mas, ouve cá, rapariga. Toda esta história tem alguma coisa a ver com o concerto?".
- "Não, Mestre, não tem nada, mesmo nada, eu é que... Desculpe, estão à minha espera para irmos dar uma volta, pela feira. Até..."
Após um momento de hesitação, muito breve, a Dulce, com um sorriso brejeiro, despediu-se e correu para um grupo que, à distância, a esperava, já, com alguma impaciência.
Mestre Horácio bebeu o último gole da cerveja. Pegou no chapéu e, ao desviar a cadeira, a
seu lado, viu, outra vez, a Dulce, junto de si.
- "Então, Dulce?".
- "Desculpe, Mestre, mas, com a pressa, esqueci-me de dar-lhe o lenço, que estava dentro da tuba do meu pai. É seu, não é?".
-"Então e..."
- "A rolha? Deitei-a fora e o meu pai nem deu por ela! Não deu por nada!".
Lesta, como uma lebre, em dois saltos, voltou para o grupo que a esperava, ainda.
Mestre Horácio tornou a colocar o chapéu, na cadeira vaga, a seu lado.
- "Rapaz, outra cerveja. Por favor:... Bem fresca!".
-"É para já, Mestre", respondeu o Chumbinho, do fundo da tenda.
Acomodou-se melhor, como pode e a cadeira o permitiu. Guardou o lenço no mesmo bolso, onde tinha o outro e, com ambas as mãos, cofiou as guias do bigode farto.
"Esperta, até dizer basta. A Dulce: uma das papoilas da sua Rapsódia", pensou, ainda.
Trauteou, em surdina, o início do último andamento da sua composição e voltou a sorrir.
Quando veio, de dentro, e se preparava para colocar a cerveja, em cima da mesa, o
Chumbinho, ainda, começou:
-"Outra cerveja p´ró Mest...".
Não acabou a frase. Voltou atrás e meteu a garrafa na geleira. Mestre Horácio dormia.
Beatificamente.
- Carlos Tomás Cebola - Junho,96