Do problema moral do humano como número
Muitas formulações estatísticas levam em consideração aspectos macrossociais em detrimento do microssocial, do sujeito único que, por vezes, tem suas necessidades esquecidas por não contar na estatística.
I
Que a ciência e a técnica dominaram a sociedade não é mais novidade, talvez nem para os mais recônditos dos grupos humanos, onde a etnicidade, outrora instrumento quase privado de identidade e afirmação social, tornou-se também objeto da curiosidade do mercado. Durante algum tempo, mantive um certo preconceito quanto a essa pujança científica toda por reduzir a verdade, infinita, fugidia e muitas vezes relativa, a um conjunto de operações exclusivas de um particular grupo social denominado de cientistas e pesquisadores, os filósofos naturais de antes. Tenho um sentimento e a vontade de que formas alternativas de construção do conhecimento, como as religiões, tradições, coletividades diversas, etc., voltem a ter espaço, sejam respeitadas para além do status de ser ou não ser ciência, valendo, é claro, o mesmo princípio de que também não se tornem absolutas e inquestionáveis. Isso é realmente mais difícil para o que não é científico, mas é preciso lembrar que existem várias formas de conhecimento estrito que não são ciência, vide a polémica sobre a cientificidade das ciências humanas ou da filosofia.
Eis que, então, vem a pandemia de covid-19 para nos fazer repensar conceitos, valores e práticas até então inquestionáveis. Comigo foi posto em xeque, entre outros temas, meu ranço com a questão da ciência e seu papel no mundo. Lembrei que, por mais que seja temeroso tornar a produção de conhecimento legitimada apenas pela ciência, existe um mundo empírico lá fora, exterior a nós, real e tangível, do qual podemos tirar melhor proveito. Neste caso, a ciência, deveras, é o meio mais eficaz. Vacinas previnem doenças; a cura do câncer pode ser vislumbrada; aviões voam e você está lendo este texto por meio da internet, utilizando um aparelho tecnológico com processadores e chips. Ou seja, no caso do mundo inquestionavelmente real, empírico, repito, a ciência, materialista que é, não oferece dúvidas quanto a sua necessidade; e nós humanos, tão vulneráveis diante da natureza, justificamos essa pujança científica - da qual criei certa aversão - hoje posta em suspensão.
II
Contudo, resta uma teimosia. Amiúde vemos e lemos nos jornais ou noticiários estatísticas e panoramas diversos sobre aspectos financeiros, políticos e económicos. Dados como desemprego, renda, PIB, cotação da bolsa, entre outros, figuram como índices privilegiados de informação na contemporaneidade. Especialmente na economia e política, temos o tipo de inferência que comumente transforma seres humanos em estatísticas, como número de desempregados, renda per capta, intenção de voto, apoio ao governo, etc. Muitas dessas formulações estatísticas levam em consideração aspectos macrossociais em detrimento do microssocial, do sujeito único que por vezes tem suas necessidades esquecidas por não contar na estatística. Um dos exemplos é a necessidade que alguns especialistas afirmam da existência de um percentual de desemprego para manter o salário e a oferta de empregos competitivas. Tudo isso com legitimação científica, justificando uma situação tão indesejada quanto o desemprego. São nestes casos que acredito que a ciência rigorosa deve ser ainda mais cautelosa. Há quem afirme que algumas das especulações dos especialistas económicos, principalmente os comprometidos com o movimento neoliberal, não passam de astrologia, mesmo estando fortemente respaldados pela comunidade académica.
Quanto ao neoliberalismo, ou, melhor, quanto à mundialização financeira em curso desde os anos 1990, seus preceitos do homo-economicus reduzem o ser humano a mero acumulador de capital, buscando sempre maximizar seus lucros em detrimento do vínculo social, esquecendo nossa principal faculdade: a de seres racionais sociais. Correndo o risco de simplificação, digo que, neste esquema, o mercado se torna o principal regulador das relações sociais, e o capital, principalmente o financeiro, se sobrepõe às necessidades mais básicas da humanidade. O mercado possui sua necessidade e, também, pode ser um meio propulsor do desenvolvimento social, inclusive, não somente económico; mas reduzir o ser humano a simples vendedor e comprador, buscando maximizar seus ganhos, repito, é prejudicial. Isso tudo não é novidade faz tempo, mas a mensagem que fica aqui - e que aproveito para o argumento deste texto - é que esse homo-economicus maximizador de ganhos, novamente simplificando, em sua forma mais ou menos radical, conforme a teoria adotada, ainda é o paradigma dominante no mainstream científico económico, e a ciência ganha, assim, sua forma perigosa, até mesmo preconceituosa e parcial, o que contraria os pressupostos básicos de sua identidade.
III
Esses questionamentos acima relatados me trazem ao ponto em questão neste artigo. Com a pandemia de covid-19 em curso, temos uma capacidade alta de contágio, com os números de infectados e mortos crescendo a cada dia. O risco de colapso do nosso sistema de saúde pública é fortemente possível, como largamente tem sido noticiado. Apesar disso tudo, o nosso presidente, Jair Bolsonaro, questionando todas as evidências científicas, que, neste caso, tratam de aspectos inquestionáveis da realidade empírica, realiza um combate contumaz às medidas de isolamento, comprovadamente eficazes como contenção do contágio. O senhor presidente alega que a economia não pode parar por conta de um número limitado de mortes e infectados, pois o estrago seria maior se a economia permanecer paralisada. Esse pensamento é típico daqueles que consideram o ser humano como número, estatística. O aspecto macro predomina sobre o micro, e uma vida perdida vale menos que a temida perda de pontos da Bolsa de Valores, o Graal do mundo económico e seus analistas.
Como falei no primeiro tópico deste texto, a ciência possui grande vantagem quando tratamos de aspectos materiais da existência. Mas, quando se trata de questões subjetivas, acredito ser mais válido o debate em torno de valores. Muitas de nossas escolhas estão fundamentas nos valores que advogamos, e, muitas vezes, as ideias que utilizamos para nos justificar são escolhidas conforme esses valores. As diversas ideias e teorias que circulam no meio social acabam se ajustando a nossos valores mais do que nos adequamos a preceitos que se dizem corretos e universais. Esses preceitos seriam assimiláveis por qualquer indivíduo que possua razão e bom senso, como querem aqueles que insistem em um critério racional universal e atemporal para a conduta do ser humano. Leis gerais e universais, independentes do contexto social, são pertinentes no mundo empírico, mas falham quando se trata do universo social.
Não quero aqui questionar totalmente a importância das estatísticas e pesquisas quantitativas no meio social, muitas vezes úteis na formulação de políticas públicas. Mas quero trazer a questão da necessidade de sermos mais criteriosos quanto ao emprego de determinados conceitos e pressupostos que se sobrepõem a característica relativista da condição humana, principalmente nos aspectos sociais e históricos. Levar mais em consideração valores, construídos e representados por coletividades, muitas vezes à parte dos muros da academia, se faz cada vez mais necessário quando as fronteiras do pensamento racional estão cada vez mais colonizando aspectos subjetivos e simbólicos da existência humana, tirando de nós uma das características mais fundamentais de nossa espécie: a capacidade de se adaptar e reinventar particularidades e formas de vivência e convivência muitas vezes - se não a maior parte delas - contingentes.
* ROCHA, Leone de Araújo. in Revista Jus Navigandi » https://jus.com.br/artigos/81572 - 28/4/2020