Um dia em qualquer
lugar, ou em todos os lugares,
Como um novo Maio,
Haverá entendimento
dos homens e dos deuses,
O fluir fácil da vida
e do trabalho,
E harmonia entre o que
se deseja e as mãos já constroem.
Um dia seremos todos
crianças maravilhadas.
Um dia seremos
inocentes,
E nus.
Maria Rosa Colaço
(Professora e escritora, natural do Torrão – Alcácer
do Sal)
A morte de um professor respeitado
Era quinta-feira e dia de festa em Nisa. O primeiro de quatro
dias de animação e de convívio entre residentes e ausentes. O Rossio fervilhava
de gente e o coreto vestira-se de gala para o concerto da banda. José Bruno, na
juventude dos seus 63 anos, ostentava, orgulhoso, a farda da filarmónica
nisense. Chegara um pouco mais cedo, o tempo para beber um café e uma água
mineral que lhe atenuasse a má disposição que sentira após o jantar.
Passou pelo coreto, mandou guardar o instrumento e
dirigiu-se a casa. O fogo interior, o aperto, transformara-se quase num sufoco.
Chamou pela Graça, a esposa e entrou quase de rompante na habitação. Um nó
apertava-lhe a garganta, os membros, o corpo todo. Queria gritar, libertar-se
daquelas grilhetas invisíveis que o apertavam e comprimiam.
Não conseguiu. Caiu no chão, fulminado, por um ataque
cardíaco.
A notícia da sua morte depressa se espalhou pela vila,
causando grande surpresa, indignação e tristeza. O saxofone esperou, em vão,
pelo dono e o concerto foi suspenso.
Não haveria “Música” no coreto. A banda tocaria uma vez,
outra, e outra, na manhã de sábado, no percurso entre a Praça do Município e o
cemitério. Trajecto silencioso, sentido, só interrompido, a espaços, pelos
acordes emotivos dos músicos da banda que se juntavam, assim, às centenas de
amigos que se despediram do José Bruno.
José Luís Tomás Bruno, o engenheiro Bruno como era
popularmente conhecido, alentejano do Torrão (Alcácer do Sal), nisense por
adopção, partia, assim, sem tempo para um adeus, para a derradeira viagem que
todos temos de fazer...
No calor da Revolução
José Bruno veio para Nisa com os pais aquando da construção
da Barragem do Fratel, inaugurada em 1973. Formou-se no Instituto Superior
Técnico, em Lisboa, num tempo de febril agitação revolucionária. O Técnico e a
Faculdade de Direito eram, na época, os maiores alfobres de jovens estudantes
que se digladiavam com ideias e teorias para transformar a sociedade e o mundo.
A primeira imagem que tenho dele situa-se no Café Nisa-Sol
da senhora Ana e Miguel Póvoa. O Bruno e outros jovens defendiam, a “revolução
a todo o vapor” e a sua contribuição para a mudança consistia um pouco naquilo
que viria a ser a campanha de dinamização cultural do MFA. Era preciso instruir
o povo, “recompensá-lo” por quase meio século de escuridão, medo e fantasmas. O
Zé Bruno trazia de Lisboa sacadas de livros e nos parapeitos das montras e
nalgumas mesas do café, estendia a sua livraria, com títulos e autores até
então proibidos, onde avultavam as obras de filosofia, economia e política,
nomes como Althusser e editoras como a Prelo.
Pouco tempo depois vou encontrá-lo no MDM – Movimento
Democrático de Nisa, na antiga leitaria e hoje sede da União de Freguesias de
Nisa, na rua Direita.
Era ali que se juntavam todos os dias, à tarde e à noite,
principalmente, nos fins-de-semana, jovens e menos de jovens de todas as
tendências políticas, ainda não totalmente enraizadas. O Bruno e outros
estudantes, politicamente mais esclarecidos, pretendiam agitar as pessoas,
lutar contra o marasmo e um caciquismo que, embora dissimulado, continuava a
reinar.
O Zé Bruno participou nos primeiros comícios em Nisa. Lembro-me
dele no palco do velhinho Cine Teatro, corpo algo franzino mas com genica, a
questionar:
“Que raio de governo era aquele...” E a cada frase incisiva,
as cadeiras de madeira rangiam, o povo agitava-se e em concordância, respondia:
“É assim mesmo! Fascismo nunca mais!
A fase revolucionária passou. O Zé Bruno continuou a
interessar-se e a participar na política local, agora com uma postura mais
crítica e moderada. Socialista, procurava resolver os conflitos, através do
diálogo e do consenso. Foi eleito presidente da Assembleia Municipal em 1982,
em representação do PS, no mesmo ano em que a APU, liderada por José Manuel
Basso conquistava pela primeira vez a Câmara, até aí de maioria socialista.
Fiz parte da AM nesse mandato e, garanto, as relações entre
a mesa da Assembleia e o executivo, não sendo de excelência, nunca travaram o
normal funcionamento da Câmara e das principais obras que esta desenvolveu.
Foi o último mandato de três anos nas autarquias locais. No
seguinte (1985-1999), José Bruno quer acabar com hegemonia comunista. Funda um
jornal, em Dezembro de 1984, “O Concelho de Niza” onde escrevem,
maioritariamente, militantes e simpatizantes socialistas. O mensário acaba em
1987. Pelo meio, em 1985, José Bruno consegue reunir na mesma lista, apoiantes
do PS e PSD, e com esse capital de confiança concorre à presidência da Câmara.
Os resultados são-lhe desfavoráveis e a APU com Basso à cabeça conquista a
primeira maioria absoluta. José Bruno assume o cargo de vereador, da oposição,
mas com uma postura colaborante.
A partir desse mandato, José Bruno afasta-se,
paulatinamente, da política. É ainda o militante interveniente, mas os seus
interesses focam-se na educação e na cultura, principalmente, no ensino, com a
transferência e a colocação como professor efectivo no quadro da Escola C+S de
Nisa.
O militante da escola
aberta
Depois de um percurso como professor na Escola Preparatória
de Mira Sintra, E. Secundária Sebastião e Silva (Oeiras), E. Secundária de
Queluz e Escola C+S do Cadaval, José Bruno ingressa na Escola C+S de Nisa no
lectivo de 1988/1989. Passa a integrar o Conselho Directivo da escola a partir
do ano lectivo 1995/96 como vice-presidente e até final do presente ano escolar
não mais deixou de pertencer à direcção da Escola, tanto como presidente do
Conselho Directivo, da Comissão Executiva, do Conselho Executivo, da Comissão
Executiva Instaladora, do Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas de Nisa
e, desde 2009, Director do AE de Nisa.
É um “lobo da educação” como lhe chama, apropriadamente, o
seu colega Miguel Baptista.
Desde os finais dos anos oitenta, José Bruno, à frente da
escola de Nisa, conheceu diversos ministros, secretários de Estado, directores
regionais, políticas e concepções educativas, “revoluções” de programas e
currículos, o ensino em Portugal andou numa verdadeira girândola, aos sabor dos
interesses políticos de circunstância.
Ainda não se falava da “escola aberta” ou da “escola
inclusiva” (que cada vez exclui mais e isto é uma ideia minha) já o José Bruno
punha em prática esses conceitos.
A construção do hipódromo ou “picadeiro”, marcou ao mesmo
tempo o início da colaboração (ou parceria, como está na moda) com a GNR, tal
como a disponibilização de um muro para a execução de graffitis, as festas
populares no recinto da escola envolvendo toda a comunidade (outro conceito que
ele já utilizava antes de constar nos manuais), o arranjo dos espaços exteriores,
o monumento ao Prof. Mendes dos Remédios. A própria escolha do nome do patrono da
escola não foi feita arbitrariamente. Envolveu a auscultação de diversas
pessoas e sensibilidades locais.
Cidadãos de Nisa, a convite do Prof. Bruno foram à Escola e falaram
a alunos do 11º e 12º anos, sobre a figura e a obra de Mendes dos Remédios.
A colaboração prática, efectiva, com as colectividades,
instituições sociais, autarquias, forças de segurança, imprensa local e
regional, estava no terreno muito antes de se tornar um “chavão institucional”
no plano educativo.
A Escola de Nisa a que o José Bruno pertencia não descurava
a memória dos que lhe deram origem. Senti a sua alegria e entusiasmo quando
acolhi e pusemos em marcha a elaboração de um suplemento no “Jornal de Nisa”
sobre os 30 anos da Escola EB 2,3 +S
Prof. Mendes dos Remédios. Do mesmo modo, senti o carinho,
apoio e colaboração quando publicámos um outro suplemento sobre o centenário do
nascimento do Dr. Cruz Malpique.
José Bruno fervilhava de ideias que resultavam de um
conhecimento dos problemas, da experiência, da leitura e da reflexão. Tinha
consciência que muitas delas sendo exequíveis e correctas, seriam de difícil
aplicação num meio rural onde os censores sociais são mais que as mães.
Inspirou o seu “modelo de escola” na sua conterrânea Maria Rosa Colaço, de que
falava amiúde e me ajudou a conhecer.
O José Bruno vivia intensamente, apaixonadamente, a “sua”
escola. Uma paixão avassaladora, tão profunda e constante, quase sufocante, que
mal lhe deixou tempo e espaço para outras paixões como a caça, a vida social e,
por último, a música, enquanto instrumentista, cuja beleza e grandeza só muito
tarde descobrira.
O militante da
cultura, o homem solidário
José Bruno fez de Nisa a sua terra de adopção. Aqui casou e
lhe nasceram os filhos e os netos. Aqui plantou árvores e flores, semeou a
palavra e o conhecimento entre tantos e tantos alunos. Sementes de futuro. Foi
dirigente de colectividades, desde o Nisa Futsal ao seu Sporting. Deu
benevolamente o seu sangue enquanto a idade e a saúde lho permitiram. Criou o
seu próprio jornal, que também era de Nisa, escreveu para outros jornais, da
“Rabeca” ao “Notícias de Nisa”, passando pelo “Jornal de Nisa” onde as suas
crónicas sob pseudónimo de Zé de Nisa e intituladas “Do Alto do Talefe” tinham
sempre fiéis leitores. Eu era um deles. Lia-as duas vezes. A primeira quando
“batia” os textos e a segunda já impressos. Eram crónicas saborosas,
reveladoras de um espírito sagaz, de um “fotógrafo” visual da paisagem, das
tradições e dos costumes, possuidor de um poder de observação meticuloso e
profundo. Agora, vou lê-las mais vezes e vou dá-las a conhecer, a quem tiver
gosto e paciência para as saborear.
Escritos que vão perdurar ao longo dos anos e de gerações e
poderão, quem sabe, ser tema de estudos e dissertações.
O José Luís Tomás Bruno morreu na quinta-feira. É um facto
que não podemos alterar, nem tampouco suavizar. A morte é a dor da ausência. O
vazio. Do corpo, da presença, do espírito. Escrever sobre ele, apesar de
doloroso, não é um exercício vão, muito menos, um livro acabado, com abertura e
epílogo. A memória de uma vida não se esgota num escrito. Há-de haver mais
páginas, outros episódios, contados noutro contexto e circunstância e sem o
fardo, pesado, da angústia da morte ainda tão próxima.
A Notícia : Faleceu o
Engenheiro Bruno
José Luís Tomás Bruno, 63 anos, engenheiro técnico
electrotécnico, professor, director do Agrupamento de Escolas de Nisa, faleceu no
passado dia 13 de Agosto, cerca das 22 horas, vitimado por doença cardíaca.
O funeral do popular professor, que fez de Nisa a sua terra
de adopção, realizou-se na manhã de sábado, dia 15 de Agosto, saindo o cortejo
fúnebre da Igreja da Misericórdia, acompanhado pela banda da Sociedade Musical
Nisense e por centenas de pessoas que quiseram tributar-lhe a derradeira
homenagem.
Por este meio endereçamos a toda a família enlutada,
especialmente à esposa Graça Bruno e aos filhos Nuno e Isabel, as nossas
sentidas condolências.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 19/8/2015