A assada, o
fotógrafo, o ferrador e um cágado
A pescaria estava aprazada há vários dias. Naquele sábado de
madrugada, ala que se faz tarde. Apetrechos vários, da função e outros que mais
tarde se viriam a revelar tão ou mais úteis que os primeiros.
A falta do hábito madrugador, cedo me obrigou a uma
sonolência semi-acordada, através da qual me chegavam ecos de conversas
indistintas de parceiros, que falavam dos pesqueiros, dos pegos mais ou menos
fundos, das correntes, dos iscos e até do antecipado prazer que, seria a visão
dos barbos a dourar sobre as grelhas.
Um solavanco mais brusco despertou-me para a realidade, bem
no interior de uma reserva de caça do Pimparel, a tempo de vislumbrar duas
corças que corriam pela encosta fronteira. Duas curvas depois, eis-nos junto ao
Sever.
Após uma breve inspecção ao local, sugerem-me um pesqueiro
já anteriormente experimentado, instalo-me e começo a função. Os outros
parceiros rapidamente tomam posições noutros locais.
Engodado a preceito o pesqueiro, é tempo para trincar uma
maçã, que fica presa nos dentes, quando a bóia é arrastada repentinamente. Um
Bordalo de respeito já cá canta. Esquece-se a maçã e esquece-se tudo o resto.
Qual Expo 98, qual crise governamental, quais referendos, quais crises, quais
problemas? Tudo se esquece perante o gozo de outro e outro e ainda outro Bordalo.
É tempo de cortar um pouco de erva para o fundo do mingacho,
para que os bordalos se mantenham frescos. O cheiro a poejos fica-me nas mãos.
Algum tempo depois, uma vaia amiga alerta-me para a bucha.
Debaixo de uma imponente azinheira, já se encontravam outros
amigos, que em grande azáfama arrumavam acessórios vários para a função que se
avizinhava: a assada. Copos de cores várias, alinhados em torno de um cocho de
cortiça, sugeriam a prova antecipada dos néctares que cada um levara.
Em cima de uma mesa improvisada com pedras, paios, presunto,
azeitonas e queijo traziam para a discussão acesa as virtualidades da
Falagueira, do Chão da Velha ou do Pé da Serra.
Um dos pescadores, fotógrafo de profissão, artista de
colocar gravatas, lenços, colares e até mesmo malinhas de senhora em retratos
de quem não os possuía no momento da pose para a posteridade, transformara-se
em artífice de monumental salada.
Outro, ferrador e conhecedor de mezinhas várias para
tratamento de animais doentes, servia pequenas doses de diferentes vinhos com a
presteza de um escanção rotinado em mil e uma recepções.
E um cágado, que chegara vergado ao peso de um mingacho
quase cheio de bordalos, abria com mil cuidados a barriga de vários barbos,
onde após uma incisão cirúrgica, procedia a uma remoção das vísceras e
introduzia um pouco de poejos. Vários golpes de canivete ao longo do dorso
completavam a preparação do peixe.
O braseiro, obtido de chamiços ali mesmo cortados,
resplandecia e o odor do peixe assado inundava de prazer as narinas daqueles
velhos mestres das pequenas coisas.
Empanturrei-me com o pão, com o peixe, com a salada e molhei
vezes sem conta a goela com um néctar dos deuses. Os dichotes, a conversa
despretensiosa, a amizade sã que transparece nos ditos e nas pequenas ajudas,
só no Alentejo.
Não digo que não exista noutros locais. Mas que raio!
Debaixo de uma azinheira, juntinho ao Sever, uma assada divinal com um
fotógrafo artista, um ferrador com artes de cura e um cágado pescador, só mesmo
comigo e no Alentejo.
Abençoados barbos e bordalos, que me ofereceram esta
crónica, que eu revejo vezes sem conta no alto do talefe.
Zé de Nisa - in "Jornal de Nisa" nº 12 – 1 Julho
1998