Um dos meus prazeres é a caça. A caça entendida como
desporto e como tempo e espaço de convívio. Não tenho companheiros fixos, hoje
vou com um, amanhã com outro. A conversa com cada um torna-se tão importante
como ver o trabalho dos cães, ou o entusiasmo de ver saltar a peça de caça.
No último dia que cacei e conversei tive por parceiro o
Rijo. E que Rijo é, este carpinteiro por sobrevivência, homem dos sete ofícios
por dádiva da natureza, lebreiro por convicção, filósofo sem o saber.
Manhã cedo, bornal às costas, a FN de três tiros na sacola e
a cadela de pêlo cerdoso a saltitar aos meus pés, lá me encontro com o
parceiro.
Pequeno de estatura, grande de coração, basta olhar para ele
para constatar que o nome condiz com a figura. Junto dele a Diana, uma poderosa
perdigueira, grande, preta e branca, merecedora de um pedaço de bolo de azeite
pelas lebres que recuperou, quando atingidas superficialmente tentavam escapar.
A Flica é a segunda cadela, pequena, toda negra, de ruim dente, um pouco tola
no campo mas mestra na arte de peúgar, dona de um par de ventas capaz de seguir
uma peça ferida do Patalou aos Agrões.
Por sugestão do mestre lebreiro, a caçada começava no Cadete
e prolongava-se pelas Fontainhas, as alterações ao previsto aconteceriam em
função da intuição e das chamadas das cadelas. Logo na primeira tapada, ao
olhar do amigo Rijo, não escapou a cama recente de uma lebre.
- Deve ser grande pela cama que fez! Devagar e olhe bem para
estes pastos.
Sem responder, avancei mais uns passos e, ela que salta. Um
tiro, um prego. Um sobressalto, as cadelas ladram, correm. Segundo tiro, um
pouco atrasado e a lebre a distanciar-se cada vez mais.
- Lá vai ela a escapar-se! Gritei eu, desiludido, olhando
para o local onde se encontrava o parceiro.
De arma à cara, o Rijo acompanhava a corrida da lebre,
segundos depois um estrondo, o animal é atingido. A pirueta que dá é a prova
disso. A Diana, mais possante, abocanha a peça e vaidosamente trá-la ao dono.
- Tem de deixar endireitar-se na corrida -, diz-me ele,
enquanto com movimentos experientes a empeúgava oferecendo-ma de seguida, para
a pendurar na cartucheira.
Fingindo-me distraído afastei-me para recusar a oferta e
gritei:
- Pesa muito. É melhor você levá-la no bornal.
Ainda insistia, quando eu me afastava do local.
A caçada continuava, mas cerca das onze horas, sem termos
visto nada mais, uma sombra apelativa de sobreiro lembrou-me o farnel.
Sentei-me a saborear o costado frito e uma golada de água da Fonte do cego, que
providenciara matinalmente. Descanso curto, porque minutos depois já ouvia:
- Vamos embora a caminho da Marofeira!
Passos curtos, olhar pregado ao terreno, na meia encosta, o
sol a aquecer, a espingarda a pesar cada vez mais, na tapada ao lado dois
companheiros:
- Bom dia, então e essa caçada?
- Má, ainda não vimos nada. Isto vai de mal a pior, não se
vê nada semeado como é que há-de haver caça?!, respondem do outro lado da
parede.
Começo a pensar que comigo vai suceder o mesmo, tanto andar
e no fim do dia não vejo as orelhas da lebre.
Nisto, o Rijo sussurra-me:
- Zé, faz atenção, elas são muito certas por aqui.
As folhas secas de um carvalho estalam, é a lebre!
Desta vez, espero que a corrida estabilize, aponto
calmamente para as orelhas e puxo o gatilho. O animal dá uma cambalhota sobre
si mesmo e imobiliza-se. Corro e levanto-a pelas patas traseiras afastando-a
das cadelas que a tentam lamber.
- Eu não dizia? E é um lebrachão, olha lá os tomates que ele
tem! – diz-me a sorrir, ao mesmo tempo que acariciava a Diana, que se mostrava
insatisfeita por não ter posto os dentes na peça.
Com o prazer que os caçadores conhecem, penduro a lebre na
cartucheira e ala para o carro, o dia estava feito.
Já no carro ao chegarmos ao alcatrão do Patalou, desabafo:
- Agora, alcatrão até casa. Estou farto de pisar terra.
Semi-cerrando os olhos argutos, responde-me ele:
- Em França, durante anos ia de casa para a usine, e da usine
para casa, sempre em
alcatrão. Quando ia ao café andava no alcatrão. Os tipos de
Lisboa, também só andam no alcatrão. Mas, em Nisa, quando saio de casa, piso
terra. Se sujo os sapatos de lama, estou no Inverno, se piso “ caramelo” é
porque fez um frio de rachar, se levanto pó é porque a mãe Natureza nos dá
calor de Verão.
Cansado de tanto andar, não lhe respondo. Mas, as palavras
dele ressoam na minha caixa craniana, onde o cérebro indolente preguiça.
Lentamente, as palavras como que flutuando, juntam-se de
novo. Os neurónios agitam-se, o cérebro desperta e uma torrente de ideias
inunda a cabeça deste vosso amigo, até à pouco adormecida.
O homem, o Rijo, lembrou-me o Agostinho da Silva, que ele
não faz ideia de quem seja. E que importa isso? Este Rijo é livre à maneira
dele, profita a vida e ainda como quem não quer a coisa, filosofa.
O carro pára na Devesa, junto ao café do Marquês. O Rijo
pede cebolas, tomate, dois copos de tinto e começa a esfolar a lebre:::
- É melhor telefonar à mulher, petiscamos aqui!
E bebemos, comemos, explicámos aos amigos os pormenores da
caçada. Mas... o jantar dava para outra crónica. Talvez um dia...
Nota: Usine e profita são termos que o Rijo usa mercê dos
anos vividos em França, aliás como muitos outros nossos conterrâneos. A zona da
caçada é a descrita, mas o local exacto do encontro com as lebres não divulgo,
porque se o fizesse esteva a ser mentiroso.
Zé de Nisa – Do Alto
do Talefe – in “Notícias de Nisa” – nº 15 – 2ª série- 12/11/1997