20.8.15

DO ALTO DO TALEFE (1): O carpinteiro Filósofo

Um dos meus prazeres é a caça. A caça entendida como desporto e como tempo e espaço de convívio. Não tenho companheiros fixos, hoje vou com um, amanhã com outro. A conversa com cada um torna-se tão importante como ver o trabalho dos cães, ou o entusiasmo de ver saltar a peça de caça.
No último dia que cacei e conversei tive por parceiro o Rijo. E que Rijo é, este carpinteiro por sobrevivência, homem dos sete ofícios por dádiva da natureza, lebreiro por convicção, filósofo sem o saber.
Manhã cedo, bornal às costas, a FN de três tiros na sacola e a cadela de pêlo cerdoso a saltitar aos meus pés, lá me encontro com o parceiro.
Pequeno de estatura, grande de coração, basta olhar para ele para constatar que o nome condiz com a figura. Junto dele a Diana, uma poderosa perdigueira, grande, preta e branca, merecedora de um pedaço de bolo de azeite pelas lebres que recuperou, quando atingidas superficialmente tentavam escapar. A Flica é a segunda cadela, pequena, toda negra, de ruim dente, um pouco tola no campo mas mestra na arte de peúgar, dona de um par de ventas capaz de seguir uma peça ferida do Patalou aos Agrões.
Por sugestão do mestre lebreiro, a caçada começava no Cadete e prolongava-se pelas Fontainhas, as alterações ao previsto aconteceriam em função da intuição e das chamadas das cadelas. Logo na primeira tapada, ao olhar do amigo Rijo, não escapou a cama recente de uma lebre.
- Deve ser grande pela cama que fez! Devagar e olhe bem para estes pastos.
Sem responder, avancei mais uns passos e, ela que salta. Um tiro, um prego. Um sobressalto, as cadelas ladram, correm. Segundo tiro, um pouco atrasado e a lebre a distanciar-se cada vez mais.
- Lá vai ela a escapar-se! Gritei eu, desiludido, olhando para o local onde se encontrava o parceiro.
De arma à cara, o Rijo acompanhava a corrida da lebre, segundos depois um estrondo, o animal é atingido. A pirueta que dá é a prova disso. A Diana, mais possante, abocanha a peça e vaidosamente trá-la ao dono.
- Tem de deixar endireitar-se na corrida -, diz-me ele, enquanto com movimentos experientes a empeúgava oferecendo-ma de seguida, para a pendurar na cartucheira.
Fingindo-me distraído afastei-me para recusar a oferta e gritei:
- Pesa muito. É melhor você levá-la no bornal.
Ainda insistia, quando eu me afastava do local.
A caçada continuava, mas cerca das onze horas, sem termos visto nada mais, uma sombra apelativa de sobreiro lembrou-me o farnel. Sentei-me a saborear o costado frito e uma golada de água da Fonte do cego, que providenciara matinalmente. Descanso curto, porque minutos depois já ouvia:
- Vamos embora a caminho da Marofeira!
Passos curtos, olhar pregado ao terreno, na meia encosta, o sol a aquecer, a espingarda a pesar cada vez mais, na tapada ao lado dois companheiros:
- Bom dia, então e essa caçada?
- Má, ainda não vimos nada. Isto vai de mal a pior, não se vê nada semeado como é que há-de haver caça?!, respondem do outro lado da parede.
Começo a pensar que comigo vai suceder o mesmo, tanto andar e no fim do dia não vejo as orelhas da lebre.
Nisto, o Rijo sussurra-me:
- Zé, faz atenção, elas são muito certas por aqui.
As folhas secas de um carvalho estalam, é a lebre!
Desta vez, espero que a corrida estabilize, aponto calmamente para as orelhas e puxo o gatilho. O animal dá uma cambalhota sobre si mesmo e imobiliza-se. Corro e levanto-a pelas patas traseiras afastando-a das cadelas que a tentam lamber.
- Eu não dizia? E é um lebrachão, olha lá os tomates que ele tem! – diz-me a sorrir, ao mesmo tempo que acariciava a Diana, que se mostrava insatisfeita por não ter posto os dentes na peça.
Com o prazer que os caçadores conhecem, penduro a lebre na cartucheira e ala para o carro, o dia estava feito.
Já no carro ao chegarmos ao alcatrão do Patalou, desabafo:
- Agora, alcatrão até casa. Estou farto de pisar terra.
Semi-cerrando os olhos argutos, responde-me ele:
- Em França, durante anos ia de casa para a usine, e da usine para casa, sempre em alcatrão. Quando ia ao café andava no alcatrão. Os tipos de Lisboa, também só andam no alcatrão. Mas, em Nisa, quando saio de casa, piso terra. Se sujo os sapatos de lama, estou no Inverno, se piso “ caramelo” é porque fez um frio de rachar, se levanto pó é porque a mãe Natureza nos dá calor de Verão.
Cansado de tanto andar, não lhe respondo. Mas, as palavras dele ressoam na minha caixa craniana, onde o cérebro indolente preguiça.
Lentamente, as palavras como que flutuando, juntam-se de novo. Os neurónios agitam-se, o cérebro desperta e uma torrente de ideias inunda a cabeça deste vosso amigo, até à pouco adormecida.
O homem, o Rijo, lembrou-me o Agostinho da Silva, que ele não faz ideia de quem seja. E que importa isso? Este Rijo é livre à maneira dele, profita a vida e ainda como quem não quer a coisa, filosofa.
O carro pára na Devesa, junto ao café do Marquês. O Rijo pede cebolas, tomate, dois copos de tinto e começa a esfolar a lebre:::
- É melhor telefonar à mulher, petiscamos aqui!
E bebemos, comemos, explicámos aos amigos os pormenores da caçada. Mas... o jantar dava para outra crónica. Talvez um dia...
Nota: Usine e profita são termos que o Rijo usa mercê dos anos vividos em França, aliás como muitos outros nossos conterrâneos. A zona da caçada é a descrita, mas o local exacto do encontro com as lebres não divulgo, porque se o fizesse esteva a ser mentiroso.
Zé de Nisa – Do Alto do Talefe – in “Notícias de Nisa” – nº 15 – 2ª série- 12/11/1997