Em entrevista ao esquerda.net, a cardiologista Maria João Andrade fala sobre os cuidados específicos que devem ter as pessoas com doença cardíaca em época de pandemia da covid-19 e alerta: as pessoas não devem deixar de procurar os serviços de urgência em casos de suspeita de problema cardíaco.
Que patologias cardíacas têm maior risco em relação à Covid?
Há muita patologia cardíaca, mas em relação ao Covid, aquilo que é mais importante é a doença coronária, a cardiopatia isquémica. Os doentes que já tiveram enfartes ou aqueles que têm condições que levaram um síndrome da insuficiência cardíaca, e que são em geral doentes com limitações funcionais, mais ou menos importantes, esses são os doentes de maior risco. Nós temos de considerar que estes doentes são de uma maneira geral idosos e a idade é, sem dúvida, um fator que pesa muito no risco em relação às complicações adversas, necessidade de cuidados intensivos, necessidade de ventilação invasiva e morte, em relação a esta doença do Covid-19.
Os doentes com doença cardíaca são muitas vezes doentes com outras comorbidades. Muitas vezes um enfarte ou doença coronária resultam de fatores de risco, que são a hipertensão, a diabetes, a dislipidemia, o tabagismo, uma série de condições que são elas próprias um fator de risco, de evolução adversa para o Covid. Esses fatores de risco que estão na base da sua doença cardíaca também constituem, por si só, fator de risco para uma evolução mais gravosa. Portanto, estes doentes estão duplamente ameaçados por uma evolução mais desfavorável.
Se uma pessoa com problemas cardíacos sentir que tem sintomas de Covid, o que deve fazer?
Acho que é muito importante, sobretudo os grupos de risco, estarem alerta e conhecerem bem os sintomas associados ao Covid. Numa maneira geral, eles têm sido amplamente noticiados nos orgãos de comunicação social: a febre, a tosse seca, as mialgias, a dor de cabeça, às vezes, a diarreia. Também foi falado num sintoma curioso que é a falta de olfato, a falta de paladar. Portanto, às pessoas que têm esses sintomas devem primeiro falar com o seu médico assistente e depois ligar para a linha SNS24.
Porque é que pessoas com alguns problemas cardíacos são população de risco para o Covid?
As doenças infecciosas e as doenças crónicas, numa maneira geral, não só a doença cardíaca mas outras doenças crónicas, partilham entre si dois fatores que são importantes em relação a uma evolução também adversa da doença: diminuição do sistema imunitário, portanto uma atenuação do sistema imunitário, e um estado pró-inflamatório, que faz parte da fisiopatologia da doença. Também por causa disso, os doentes com Covid e doenças crónicas, em particular a doença cardiovascular têm um risco aumentado.
O vírus ataca unicamente os pulmões?
É sobretudo nas células dos alvéolos pulmonares que ele penetra, que se liga e faz os efeitos mais nocivos, que levam muitas vezes à morte. Também foram identificados recetores e vírus noutros tecidos do organismo, no coração, nos vasos sanguíneos, no rim, no intestino, e portanto, há formas de manifestação da doença que podem adquirir outros quadros clínicos que não pulmonar. Tem havido descrições, uma literatura médica, de miocardites, em que é um insulto major não ao pulmão mas ao coração. Portanto, há causas de miocardite, causas de falência ventrícular, e a evolução da doença Covid, quando é uma forma grave acaba em falência multiorgânica, em que há não só a insuficiência respiratória mas também falência renal, falência cardíaca, e acaba por causar a morte. Se nós formos ver os números da Direção-Geral da Saúde, a mortalidade nos homens acima dos 80 anos é 20%, mesmo cá em Portugal, portanto nós temos de ter uma atenção muito especial aos nosso idosos, penso que isso tem sido feito mas tem de continuar a ser feito.
O que deve fazer uma pessoa com sintomas de um problema cardíaco?
É absolutamente importante nós percebermos que o resto da assistência nas outras patologias não pode parar devido a este epidemia do Covid, porque há situações inadiáveis. É vista com muita preocupação pelos cardiologistas, e já tem sido referido isto várias vezes, a diminuição muito significativa no número de enfartes nestas semanas em que temos estado em isolamento. Há o receio de que as pessoas tenham medo de ir para o hospital com esta situação, mesmo com um enfarte, e deixarem-se estar em casa. É absolutamente importante que isto não aconteça. Em qualquer situação que faça o quadro clínico, que faça pensar num enfarte - seja uma dor pré-cordial, peso, queimadura que erradia para os braços, com náuseas, com suores e que não passa, sobretudo em indivíduos com fatores de risco para a doença coronária -, as pessoas não devem hesitar em ligar para o 112. Assim como, o AVC, não se pode deixar de tratar as condições urgentes.
O que devem fazer as pessoas com problemas cardíacos em relação às suas consultas e procedimentos de rotina?
Qualquer coisa que seja não urgente, uma coisa de rotina, numa maneira geral pode ser adiada sem consequências, e portanto neste momento penso que todos os hospitais estão a contactar os doentes, a falar no sentido de que a consulta presencial e os exames que não forem prioritários estão adiados e é dada uma data nova para o agendamento. Os doentes não devem deslocar-se ao hospital para obter uma informação, porque isso deve ser conseguido realizar pelo telefone, porque quanto mais nos resguardarmos todos, melhor e as pessoas mais doentes em particular.
O que vão fazer os hospitais em relação a procedimentos prioritários de outras doenças que não a Covid-19?
Se há muita doença estável, em que uma consulta ser adiada 3 meses ou 6 meses não faz diferença, desde que haja um acompanhamento à distância, há outras condições em que um mês ou dois meses contam em termos de prognóstico, em termos de evolução.
Numa maneira geral, penso que as coisas estão a correr bem, só com essa preocupação que eu disse, é que é preciso que os outros tratamentos urgentes sejam também acautelados e é preciso que se faça uma ordem de prioridades das coisas que estão a ser adiadas, de modo que os adiamentos não comprometam o desfecho, a evolução da doença e o resultado dos tratamentos.
Os hospitais estão preparados?
Para o nosso país, que tinha um Serviço Nacional de Saúde débil, frágil, muito castigado nestes últimos anos, com um desinvestimento grande, foram muito importantes estas semanas que nos foram permitidas de isolamento para preparar os hospitais de modo a lidar com esta situação nova. Porque é fundamental criar circuitos diferentes no hospital, para não permitir a contaminação entre os doentes que possam ser Covid positivo, ou serem portadores assintomáticos e portanto, fazer o teste, de maneira a proteger os outros doentes que lá estão e os profissionais de saúde. Este tempo foi muito importante para permitir isso. Numa maneira geral, os hospitais já estão preparados para receber as pessoas, foram montadas tendas na parte frontal da maioria dos hospitais, em que é feito um primeiro screening, e se faz o teste, e se a condição clínica dá tempo para esperar que uma resposta do teste permitir - fazer circuitos separados nas patologias entre os doentes Covid, ou suspeitos de Covid, e aqueles não Covid.
Maria João Andrade é cardiologista e respondeu às perguntas do esquerda.net sobre os cuidados que as pessoas com doenças cardíacas devem ter para com a pandemia da covid-19.