24.4.20

OPINIÃO: Regressar à vida

 Devem ser poucos os portugueses que nunca assistiram à homilia televisiva da hora de almoço (que também passa à hora de jantar). Todos os dias, Graça Freitas, Marta Temido e António Lacerda Sales trazem-nos as novas sobre a pandemia.
Quantos casos suspeitos, infetados, mortos, recuperados, internamentos, quantos em cuidados intensivos. No início, associavam os números a subidas abruptas, depois destacaram os sinais de acalmia na curva, até chegarem ao planalto atual, que, um dia, nos conduzirá de novo ao sopé da montanha e à tranquilidade. Ou talvez não. Porque a conferência de Imprensa não retrata, nem de perto, a dimensão da catástrofe. Há muito mais vidas diminuídas ou destruídas do que aquelas que ali se reportam. E também mereciam um "briefing" diário, com números, curvas e gráficos, embora diferentes protagonistas. Siza Vieira, para nos atualizar sobre a subida abrupta do número de empresas e trabalhadores em lay-off (mais de um milhão e a subir a uma velocidade na ordem das dezenas de milhares por dia). Ana Mendes Godinho, para nos mostrar a curva dos despedimentos massivos (houve 65 mil novos pedidos de subsídio de desemprego no último mês). Mário Centeno, para destacar a quebra nas receitas dos impostos, seja no IRS, no IRC, ou no IVA, ou seja, as receitas que o Estado já não tem para pagar as despesas que assumiu. Suspeito que nesta conferência de Imprensa, que não existe, estaríamos longe de ver sinais de acalmia na curva e ainda mais longe da chegada ao planalto. Suspeito também que, existisse este esclarecimento diário, e os portugueses já teriam percebido que a quarentena não só não trouxe a cura como arrastará muita gente para a miséria.
Protejam-se, portanto, os grupos de risco (88% das vítimas mortais têm 70 ou mais anos) e regressemos à vida. Abram-se creches, escolas, fábricas, restaurantes, cabeleireiros, lojas. Disfarce-se o medo com máscara, luva, viseira e desinfetante. A luta contra o vírus do empobrecimento e da miséria só se vence com um regresso massivo ao trabalho. Já agora, com salários decentes.
Rafael Barbosa in "Jornal de Notícias" - 23/4/2020