Naquele tempo, na "Vila"...
Naquele tempo, na "vila", havia o Dick Daring, da polícia montada. Havia o Kit Carson, o "Mundo de Aventuras" e o "Condor" Popular". O "Falcão" era para gente "endinheirada", custava 25 tostões e relatava as aventuras do Major Alvega. Com esse dinheiro, íamos para as duas filas da frente do velhinho Cine Teatro e "abocanhávamos", antes dos outros espectadores, as leituras feitas de som e movimento.
A nossa "biblioteca", era uma qualquer esquina ou o lagedo frio e desconfortável da Igreja da Misericórdia. Que era lá isso, comparado com o deleite que os livros de cowboys nos davam. Traziam-nos e faziam de nós heróis, nem que fosse por breves instantes, em espectaculares cavalgadas pelas imensas pradarias que iam da Porta de Montalvão à Devesa ou à Fonte da Pipa. Cavalgávamos numa sela de sonho e fantasia. Mas líamos e dessas leituras-aventuras muita coisa ficou. Despertámos, ainda miúdos, para a realidade, para o prazer da escrita e das palavras. Muitos de nós, "passaram" do Oeste para a fria Albion da Enid Blyton. Das aventuras dos "Cinco" para as do Corsário Negro e para os relatos empolgantes de Emílio Salgari, talvez o "campeão de vendas" dessa altura. No top das preferências, estava, de certeza. A viagem e a descoberta das letras impressas levar-nos-ia, depois, à popular carrinha cinzenta da Gulbenkian: a biblioteca-itinerante nº 35, que aguardávamos, em dias certos, fizesse chuva ou sol, no Rossio. Aí, um outro mundo se nos abria: Rodrigues Miguéis, Urbano Tavares Rodrigues, Ferreira de Castro, Torga, Namora, eu sei lá quantos mais.
Por essa altura, já o Zé do Rosário sonhava com a Marinha e as aventuras que o levariam a percorrer as bolanhas da Guiné, os mil e um cursos de água da terra ponteada de tabancas, onde fulas, balantas e manjacos aspiravam à liberdade.
Não faltariam os livros e o "República" nas viagens de LDG pelo Gêba, pelo Mansoa ou pelo Cacheu acima. Longe estaria, certamente, de pensar, que o rapaz da "vila" que lia as aventuras de "Lúcio, o Xerife", ou do "Buck Jones", viria, anos mais tarde, a embarcar numa das mais belas aventuras da existência humana: a de erguer, quase sozinho e a pulso, uma casa-biblioteca num recôndido lugar do interior. Uma semente que, de flor em flor, germinou de forma impetuosa, criou raízes, alargou avenidas e constituíu-se como rosa emblemática de todo o Norte Alentejano.
Este é (era) o perfil que não tinha pensado. Saiu-me ao correr da pena. Queria realçar as qualidades, o esforço, a dedicação exemplar, do principal obreiro da Biblioteca Municipal Mota e Moura, de Nisa. Mas, lembrei-me, tal como Brecht, de que o homem nada faz, isolado. Seria injusto para tantos outros, que ajudaram a erguer o maior monumento de que Nisa dispõe, no campo cultural.
Como disse José Murta, "é justo recordar o Homem e a Obra", os anos "intensamente vividos e dedicados à difusão do livro e da leitura", que deixaram "uma marca indelével no Património Cultural de Nisa" que "extravasa as fronteiras geográficas do concelho e guindou a Biblioteca Municipal de Nisa a ponto de referência no panorama cultural da região".
O José do Rosário Cebola, de consciência assumida, pode, agora, "exilar-se" no segredo das suas três "vitaminas", de alto valor anímico e fantástico: " o campo, a leitura e as duas netinhas maravilhosas, que são o maior encanto do mundo".
Temo, no entanto, que se perca um excelente gastrónomo-escritor. Aquelas "batatas de arrebolão", têm de figurar, forçosamente, na memória artística-cultural-gustativa de Nisa.
Ou vamos deixar perder, esse sabor, tão genuinamente nizorro?
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" nº 104 - 20/3/2002 - Suplemento "20 anos da Biblioteca Municipal".