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31.8.25

OPINIÃO: Não vamos embora


À primeira vista, é "apenas" um gesto de inabilidade política, indelicadeza e desrespeito pelo escrutínio a que qualquer titular de cargo público está sujeito. Terminada uma curta declaração sobre os incêndios, a ministra da Administração Interna ignora uma pergunta dos jornalistas, levanta-se e dirige ao staff um sonoro "Vamos embora". O que acaba por ser, simbolicamente, uma síntese perfeita do que sucessivos governos têm feito ao país que arde e sofre as consequências do abandono.

O Estado tem ido embora, literalmente, de concelhos onde foram encerrados serviços públicos que eram essenciais para assegurar proximidade, conhecimento do território, qualidade de vida e dinâmicas locais de emprego. E tem ido embora a cada decisão que acentua assimetrias e concentra recursos e investimento em Lisboa - o que acontece em praticamente todas as áreas setoriais. Se analisarmos orçamentos e modelos de decisão e governação, somos um país profundamente centralizado e em que grande parte do território é, de facto, paisagem.

Os incêndios não são um problema de floresta. Com isto não se ignora a necessidade de ordenamento, a falta persistente de cadastro, o impacto das espécies e tantos outros temas que exigem uma abordagem especializada. O que se pretende sublinhar é que, a montante das questões florestais, há um contexto dramático de despovoamento que condiciona toda a estratégia territorial. Espaços rurais ocupados e com atividade económica são naturalmente espaços com prevenção e maior capacidade de vigilância.

Há um país que resiste, aquele que vemos desesperado a apagar as chamas e para quem o verão é o resultado previsível do esquecimento no resto do ano. Um país cada vez menos representado no Parlamento, devido ao nosso sistema eleitoral, e para o qual até os fundos europeus começarão a escassear, se vingarem as mudanças previstas nas políticas de coesão. É vergonhoso que o Governo vire costas a quem, pelo contrário, não vai embora.

·         Inês Cardoso – Jornal de Notícias- 20 de agosto, 2025

 

15.6.25

OPINIÃO: As palavras e as pontes


Existimos em abertura. São as pontes que criamos que nos vão alargando o mundo e nos mostram respostas que sozinhos não veríamos. O que pode parecer uma evidência é hoje mensagem a repetir com insistência e sobretudo com ação condizente. A poesia com que Lídia Jorge teceu ligações entre o passado e o futuro, recordando a mistura e a diversidade que nos corre nas veias, teve o tom certo para tempos em que alguns professam a solidão e a divisão.

Marcelo Rebelo de Sousa e a escritora convidada para o último Dia de Portugal presidido pelo atual chefe de Estado estiveram sintonizados. Sem esquecer um dos temas clássicos dos seus mandatos, a pobreza ou o risco dela que afetam um em cada cinco portugueses, o presidente da República sublinhou que cuidar dos “nossos” é tarefa que exige uma visão solidária, relacional e coesa da sociedade. Não exclui ninguém, pelo contrário: é quando alguém fica para trás que nos tornamos incompletos e mais pequenos.

O país não cresce em fechamento. Somos em movimento, somos em relação, somos porque cruzamos as diferenças e nos enriquecemos com elas. Sem revisionismos, mas aprendendo com os erros que marcam a nossa história. E se esse é um equilíbrio tão difícil, é essencial que o conhecimento e a Cultura contribuam ativamente para o atingir.

Numa altura em que a Cultura perdeu espaço no Governo (a somar ao orçamento que sempre lhe faltou), foi importante a voz de Lídia Jorge. A salientar a atualidade de Camões e a força da palavra, capaz de fazer revoluções. A palavra é combate e reconstrução. A palavra encontra caminho entre a falha e a imperfeição.

·         Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 11 junho, 2025

28.5.25

OPINIÃO: Coisas de mulheres


Não há motivos para surpresas no retrato que o grupo de peritos do Conselho da Europa traça do combate à violência doméstica e sexual em Portugal. A visão “patriarcal” atribuída aos magistrados e a crítica às “sanções brandas e desproporcionadas” são espelho de um problema cultural profundo. As desigualdades de género continuam a ser menorizadas e remetidas para a categoria de “tema de mulheres”, como se não fossem de todos (sendo neste caso o plural propositadamente masculino) as responsabilidades e as consequências do desrespeito por direitos básicos.

Se o debate sobre as desigualdades é difícil, mais tímida ainda tem sido a abordagem aos direitos dos menores afetados. Sabe-se que, quando há violência entre adultos, uma elevada percentagem de crianças acaba por sofrer maus-tratos. Mesmo que não sejam vítimas diretas, sofrem danos traumáticos e carregam consigo fatores de risco para a replicação de dinâmicas relacionais disfuncionais no futuro. O círculo vicioso da violência é transmitido entre gerações.

As sucessivas mudanças legislativas, a criação de equipas multidisciplinares, os mecanismos de suporte que ajudam a vítima a libertar-se do agressor, todas as ações políticas e de organizações não governamentais são essenciais para quebrar esse círculo. Mas a mudança mais difícil é a cultural. Sobretudo porque esse não é um trajeto linear, mas um percurso sinuoso que tem tanto de conquistas como de recuos e hesitações. Nenhuma visão obscurantista pode defender que o amor se alimente de violência e de vínculos artificiais. Onde não há proteção nem segurança, não há família. Este é o princípio básico sobre o qual temos, tribunais incluídos, de começar a estar de acordo. 

·         Inês Cardoso - 28 maio, 2025

23.5.25

OPINIÃO: Contra os gritos, ideias

Nas últimas 48 horas têm-se multiplicado as interrogações sobre o que aduba a extrema-direita e as respostas são inevitavelmente multifatoriais. Há temas óbvios que impulsionam o Chega, da imigração à corrupção (em que surfa apesar dos arguidos e casos que colecionou na sua bancada), e o tão analisado ressentimento com a governação. Perante o desmantelamento do Estado social ou a falta de respostas na habitação, encontrar culpados e apontar dedos é o caminho mais óbvio.

O fenómeno dos extremismos é global e será preciso analisar tendências transversais. Desde logo o imediatismo e a estupidificação nas redes, a desinformação e a forma como estamos a ser empurrados para bolhas que estreitam a nossa perspetiva do mundo. O individualismo tem horror à diferença e à alteridade. O insulto, a agressividade e o ódio têm vindo a ser normalizados e assistimos até a uma certa dessensibilização coletiva, evidente na forma como lidamos com Gaza, com a não-vida das mulheres no Afeganistão ou com a violência no Sudão.

Temos de olhar para o que está a partir-nos, porque a extrema-direita capitaliza a divisão e não conseguimos combater o que não compreendemos. A política assenta no princípio da equidade e a sua missão é permitir que cada pessoa tenha direito a ser inteira. Está obrigada a ir à raiz social do problema e perceber o fascínio por projetos que dividem e segregam.

Este não é um combate que opõe esquerda a direita e polarizar só nos enfraquece. É um combate civilizacional, de todos os democratas para quem a diversidade, a liberdade e a coesão social não são meras palavras. Não se responde à gritaria com mais gritos, rótulos ou preconceitos, mas com firmeza, ideias e valores. A democracia que permite espaço ao que a corrói é a mesma que tem de derrubar o ódio e a ação antidemocrática.

·         Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 21 maio, 2025

12.2.25

OPINIÃO: Os jovens e a falta de futuro

Dois estudos sobre o fascínio dos jovens por discursos populistas e totalitários impulsionaram, na última semana, o debate sobre o tema no Reino Unido. As questões colocadas a jovens com até 27 anos revelaram resultados surpreendentes: 45% apoiam a pena de morte, 52% consideram que viveriam melhor com “um líder forte no comando” e 33% defendem que a governação seja entregue ao Exército. Na análise que se seguiu, com pinças dado o risco de clivagens geracionais, vários sociólogos alertaram que o retrato mostra uma geração encurralada pelo elevado custo de vida e por salários desajustados face às qualificações. Uma geração a quem a crise climática criou uma sensação de urgência e de falta de futuro. Online, circulam a alta velocidade e conseguem ter voz. Offline, sentem que as instituições, partidos incluídos, lhes fecham a porta e dificultam a participação. Com evidentes variações de país para país, a abertura dos mais jovens a discursos populistas vai-se revelando transversal e um sinal de que a educação não basta. E também não faz sentido diabolizar as escolhas: é preciso entendê-las. Até porque aos grandes temas económicos e sociais que afetam os jovens somam-se as doenças endémicas dos partidos. A corrupção (percecionada como estando pior do que nunca em Portugal, de acordo com o índice divulgado ontem pela Transparência Internacional), o compadrio, os casos que tocam diferentes partidos, a incapacidade de renovação do sistema político, tudo somado vai criando um sentimento de desesperança. Os jovens são os mais flexíveis e abertos a mudanças. É crucial analisar o que os seduz e procurar que sejam ativos na construção de uma casa comum mais coesa e justa, sem permitir que desistam de acreditar nos valores democráticos. Os nossos líderes políticos têm mesmo de analisar as causas do ressentimento, assumir os erros e qualificar a vida pública. Se a renovação não for feita por dentro, poderá revelar-se francamente perigosa. Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 12 fevereiro, 2025

5.2.25

OPINIÃO: Vigilância nunca é amor

É provável que o termo “stalkerware” não lhe diga nada ou lhe pareça vago e distante. Refere-se a programas ou aplicações móveis que permitem captar informação exaustiva de telefones ou computadores de outra pessoa. As funcionalidades variam muito, mas podem ir do registo da atividade na internet até à gravação de mensagens trocadas, passando ainda pela localização da pessoa vigiada. Se tudo lhe soa a ficção científica, a verdade é que a utilização deste tipo de ferramentas tem aumentado em todo o Mundo e em Portugal cresce cerca de 5% por ano. Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, afirma haver dados demonstrativos de que os jovens estão a usar este tipo de apps para vigiarem, em tempo real, onde está o outro. Há uma normalização de comportamentos abusivos, como se o ciúme autorizasse o controlo e este fosse uma prova de amor. Todos os anos, à medida que se aproxima o Dia dos Namorados, multiplicam-se os estudos sobre a violência no namoro. Os resultados estão longe de ser encorajadores e mostram mesmo subidas preocupantes na violência psicológica e na coerção sexual. Há ainda sinais de equiparação entre comportamentos femininos e masculinos no controlo e agressão, embora na violência sexual seja maioritariamente a mulher a vítima. Os números evidenciam que décadas de discussão pública sobre violência de género não têm ajudado a promover mudanças. Num único mês, desde início do ano, morreram pelo menos cinco mulheres em contexto familiar. E ainda assim os mais jovens vão perpetuando definições de amor que confundem relação com posse, compromisso com controlo, entrega com submissão. É preciso trabalhar mais na educação e na prevenção, desconstruir conceitos tóxicos e ensinar que o amor respeita integralmente o outro e a sua liberdade. A violência na intimidade nunca é privada. É uma doença que nos fragiliza coletivamente e (mais) uma demonstração da nossa incapacidade em entender que cada pessoa é um universo particular e sagrado. • Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 05 fevereiro, 2025 ** IMAGEM - Pintura de Augusto Pinheiro

15.1.25

OPINIÃO: Encostado à Direita

À primeira vista, a conjugação dos vários quadros da sondagem Pitagórica para JN/TSF/TVI/CNN parece indicar que a gestão de imagem do Governo e a visão pragmática de Luís Montenegro, apropriando-se de temas clássicos de André Ventura, como a segurança, estão a dar alguns resultados. A AD descola timidamente do PS, ainda que sem força para sair do cenário de empate técnico, e ganha ligeiro espaço ao Chega, que fica abaixo da percentagem conquistada nas legislativas. Cruzando as intenções de voto e popularidade dos líderes com a pergunta muito concreta sobre as ações policiais, em que 57% dos inquiridos afirmam concordar com operações idênticas à realizada pela PSP na Rua do Benformoso, poderá ler-se mais um sinal de que o primeiro-ministro tem conseguido atingir uma confortável avaliação positiva à custa da aproximação ao discurso da extrema-direita. Não nos deixemos, ainda assim, iludir pela aparente contenção do espaço do Chega. Os números vão mostrando que resiste e que a queda aparatosa nas europeias foi um acidente de percurso e não propriamente o princípio do fim. Mais, a penetração nas camadas jovens merece leitura atenta e mostra até margem para progressão. As autárquicas deverão dar-lhe malha territorial e o papel de fiel da balança nalguns executivos minoritários. A clareza dos números vê-se, isso sim, na avaliação a Pedro Nuno Santos. A nota negativa e a elevada taxa de rejeição tornam mais crítico o ciclo eleitoral que se iniciará com as autárquicas e que terá nas presidenciais prova de fogo, com o PS atrasado na identificação de um candidato sólido. Seja pela dimensão do Chega, ou porque o PSD encosta à Direita e contribui para dar tração ao discurso securitário, ou ainda porque um PS enfraquecido deixa a Esquerda mais diminuída, todos os sinais do nosso ambiente político - como de resto acontece no plano internacional - mostram que a vigilância e defesa intransigente dos valores democráticos devem manter-nos coletivamente em sentido. • Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 15 janeiro, 2025

2.1.25

OPINIÃO: À nossa porta

No ano que agora começa, pelo menos um terço das câmaras municipais vai mudar de liderança. Há 103 presidentes que atingiram o limite de mandatos e é inevitável a troca de rostos, ainda que seja mais incerta a efetiva renovação de projetos. Há também um novo mapa administrativo a ter em conta, em resultado do processo de desagregação de freguesias em curso. Ingredientes que justificariam uma maior atenção às eleições autárquicas, que têm sido ofuscadas pelo constante debitar de nomes para as presidenciais. Embora desiguais na dimensão e capacidade de intervenção, até porque a assimetria é a marca de água do país pequeno mas desequilibrado que somos, as autarquias são a primeira linha de poder junto dos cidadãos e essa proximidade permite-lhes um olhar único que deve ser uma mais-valia na resolução dos problemas. É nessa base territorial que começa o trabalho por mais coesão social e a luta contra as desigualdades. Dois exemplos muito simples ilustram esse papel e o tanto a fazer a nível local. Um deles é a fraca representatividade das mulheres, que nas últimas autárquicas sofreu mesmo um retrocesso. Foram eleitas apenas 29, um peso de escassos 9% no panorama nacional. Outro exemplo passa pela integração de imigrantes. Ao contrário do passado, em que a imigração era um fenómeno marcadamente urbano ou limitado a algumas regiões do país, o peso dos estrangeiros é agora determinante e uma oportunidade em concelhos deprimidos no Interior do país. Basta dar os exemplos de Oleiros e Vila Velha de Ródão, com mais de 40% de nascimentos de estrangeiros no último ano, para se perceber de que estamos a falar. Num mundo global e carregado de incerteza, dos conflitos armados à entrada em cena de Donald Trump e os seus barões (como o influente Elon Musk a meter o dedo na Alemanha), do novo ciclo numa Europa frágil às ameaças a princípios humanistas e direitos que julgávamos estabilizados, é natural que nos balanços olhemos para o que (não) podemos esperar à escala internacional. Mas é igualmente crucial recordar que uma sociedade com mais justiça e equidade começa à nossa porta. Inês Cardoso – Jornal de Notícias -01 janeiro, 2025

13.11.24

OPINIÃO: Mergulhados no deserto

Depois de vários anos de ausência, os jornais em papel voltaram a ser vendidos em Freixo de Espada à Cinta por iniciativa do Município, que assume o serviço e os encargos com os exemplares não vendidos. A decisão é tomada na lógica de que o acesso à informação, consagrado na Constituição, é um direito de qualquer cidadão, onde quer que resida. A prática tem vindo a demonstrar o inverso. Uma boa parte do país está cada vez mais afastada das notícias – na ótica do consumo e simultaneamente como território nelas retratado. O estudo mais detalhado sobre os chamados desertos de notícias em Portugal data de 2022 e é da responsabilidade da Universidade da Beira Interior. Revela que 166 dos 308 concelhos do país estão em deserto de notícias, em semideserto ou ameaçados. Ou seja, não possuem noticiário local ou meios de comunicação locais, ou quando estes existem têm uma periodicidade que não assegura a regularidade da informação. Quando se trata de assimetrias, o Interior comprova invariavelmente a sua fragilidade. Em Bragança e Portalegre, mais de metade dos concelhos estão no deserto ou semideserto. Como explicam os autores do estudo, o problema agudiza-se em “regiões distantes dos grandes centros, com baixa atividade económica, onde os antigos jornais locais não conseguem mais sustentar-se”. Sem visibilidade, é uma parte do país que desaparece do espaço público. A iniciativa da autarquia de Freixo de Espada à Cinta surge em contraciclo, procurando contrariar o afastamento das populações em relação aos media, apesar de estes terem em larga medida abandonado os territórios. O jornalismo de proximidade é crucial, mas até em meios urbanos está ameaçado. Que o diga o Correio da Feira, com atividade “suspensa” por tempo indeterminado depois de 126 anos a cobrir a atualidade no município de Santa Maria da Feira. Segundo a administração, “poucos, e por isso insuficientes, estão interessados em pagar para se fazer informação profissional”. Que consequências poderá ter o deserto que nos vai silenciosamente absorvendo? Talvez estejamos demasiado distraídos com o ruído e a aparente abundância das redes para procurarmos antevê-las. • Inês Cardoso – Jornal de Notícias -13 novembro, 2024

23.10.24

OPINIÃO: Uma nova definição de coesão

Somos um país de assimetrias e há muitas maneiras de olhar para os números que as ilustram, mas na hora da verdade as conclusões confluem para um dado inequívoco: é nas chamadas regiões de baixa densidade que há maior risco de pobreza, o mais baixo rendimento médio e os valores mínimos no PIB per capita. Mostram-no de forma consistente os sucessivos relatórios do INE, da Pordata ou da Rede Europeia Anti-Pobreza, entre muitos outros estudos. É por essa razão que as políticas de coesão têm tido como objetivo promover um maior equilíbrio e desenvolvimento económico nas diversas regiões, procurando multiplicar a fixação de pessoas e de investimento no Interior. No congresso do PSD, o primeiro-ministro estreou um novo conceito de coesão territorial, convidando “qualquer sítio do país a olhar para a nossa capital” e apresentando o grande projeto de requalificação que visa criar uma “metrópole vibrante e homogénea” nas duas margens do Tejo. Não se discute que a região de Lisboa tem evidentes disparidades, até porque os municípios com maiores rendimentos são precisamente os que têm desigualdades de distribuição mais altas. Também podemos relativizar a forma como Luís Montenegro anunciou com pompa projetos há muito conhecidos para revitalização da Margem Sul. O que é mais difícil de perceber é que tenha feito corresponder a esse anúncio o tema da coesão territorial, subvertendo-o na sua base. No meio do ruído intenso causado pela promessa de libertar a disciplina de Cidadania das suas “amarras ideológicas” (essa bandeira que tanto inquieta os portugueses, na opinião de Montenegro), esta visão de um país a olhar mais uma vez para a capital passou sem sobressaltos por entre os pingos da chuva. Não fosse uma reação do presidente da CCDR-N, que defendeu um “modelo policêntrico” e sublinhou que “o Norte espera uma política de coesão no verdadeiro sentido da palavra”, e quase nada se diria sobre o tema. Imagino que ao menos o ministro Castro Almeida se tenha inquietado com a nova definição de coesão territorial. Resta saber se consegue discuti-la à mesa do Conselho de Ministros. Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 23 outubro, 2024

16.9.24

OPINIÃO: A normalização das desigualdades

A justiça confronta-se com problemas tão sérios, da morosidade às omnipresentes escutas, que só essa enorme latitude de temas polémicos justificará a escassa reação que mereceram as declarações da procuradora-geral da República, no Parlamento, sobre os “constrangimentos” causados pela predominância de mulheres na magistratura do Ministério Público. Quando questionada sobre a falta de recursos humanos, Lucília Gago entendeu acentuar as ausências causadas pela gravidez, ou pior ainda pela gravidez de risco, as horas para amamentação ou a necessidade de assistir filhos menores.
De uma penada, Lucília Gago não se limitou a atacar os direitos das mulheres e a expor o total desequilíbrio a que se sujeitam na compatibilização entre vida profissional e familiar. Pôs em causa conquistas civilizacionais e direitos que deveriam estar adquiridos. Só que não estão e os próprios sindicatos do setor, incapazes de pôr de lado o corporativismo na leitura da audição, teceram elogios à procuradora-geral e ignoraram os pontos polémicos, incluindo em matéria de direitos laborais.
As declarações de Lucília Gago são um bom exemplo do quanto há de ilusório no caminho da igualdade e de como tão facilmente se normalizam comportamentos e declarações que expõem de forma tão descarada a discriminação. E é tão fácil encontrar esse padrão em tantos outros desequilíbrios na nossa vida coletiva. É o caso, pegando noutro exemplo da semana, da profunda injustiça no acesso à educação, um direito protegido constitucionalmente.
Enquanto famílias com capacidade financeira pagam explicações para suprir a falta de professores em determinadas disciplinas, quem não dispõe dos mesmos recursos vai ficando para trás. Bem podemos desfiar teorias sobre o mérito, fingindo que, se nos esforçarmos, todos podemos conquistar o mundo. A verdade é bem diferente: a escola está longe de oferecer a prometida igualdade de oportunidades. E numa sociedade que tanto precisa de empatia e de entreajuda, normalizar as desigualdades é meio caminho andado para não as corrigir.
Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 15 setembro, 2024
 

25.8.24

OPINIÃO: O que arde na Madeira

 

Já estamos habituados a que um incêndio origine um rol de críticas (ano após ano repetidas) e trocas de galhardetes entre os atores políticos. O que há mais de uma semana arrasa a Madeira acumula, ainda assim, uma sucessão de incidentes que mostra de forma exemplar o ambiente político muito próprio do arquipélago.
Se é verdade que o PS se mostrou precipitado ao pedir uma comissão de inquérito para apurar o que falhou na resposta ao fogo, o presidente do Governo Regional foi generoso a dar balas ao adversário. Não tanto por ter demorado a interromper as férias (com mais relevância simbólica do que efeito direto na gestão de emergência), mas pela arrogância e sobranceria que foi demonstrando em diversas intervenções.
Desde logo pela recusa de meios auxiliares numa fase mais precoce do incêndio. Só após vários dias foi admitida a necessidade de meios aéreos adicionais (que a Madeira já teve em 2022 mas cortou devido à despesa) e aceite a colaboração de equipas da Força Especial de Bombeiros e dos Açores.
A aparente desvalorização inicial do fogo foi mantida com insistência por Miguel Albuquerque mesmo quando os milhares de hectares ardidos tornaram evidente a dimensão dos danos e as chamas começaram a atingir a floresta Laurissilva. Repetindo a tese de que o importante é não haver pessoas ou habitações atingidas, o líder regional minimizou as  
consequências nos ecossistemas e rematou com a lapidar declaração de que não aceita “lições” de ninguém.
A cereja no topo do bolo foi a alegada tentativa de impedir o acesso da Comunicação Social e o relato de pressões sobre jornalistas que assinaram notícias sobre o tema. As limitações foram denunciadas pelo Sindicato dos Jornalistas e obrigam a refletir sobre os vícios de quem está habituado ao poder monocromático. Em momentos de crise, a incapacidade de lidar com o escrutínio é o sinal mais revelador de que muito falhou por estes dias na Madeira.

Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 23 agosto, 2024

12.8.24

OPINIÃO: Extrema-direita: a importância de falar

 
O primeiro condenado na onda de desacatos no Reino Unido viu ser-lhe aplicada uma pena de três anos de prisão. Derek Drummond já tinha 14 condenações anteriores e confessou ter participado no motim e ter atirado objetos a polícias. Centenas de detidos estão a chegar aos tribunais, depois de uma semana em que as ruas foram tomadas pela raiva, alimentada a notícias falsas e mensagens de ódio contra migrantes e refugiados.
A violência que nos tem chegado através das notícias e de relatos da comunidade portuguesa justifica reflexão. Desde logo, pela velocidade a que as informações falsas sobre o atacante de Southport circularam entre grupos de extrema-direita, mostrando como não há esclarecimentos ou factos capazes de travar uma mentira em que demasiadas pessoas gostam de acreditar.
Importa olhar, por outro lado, para a capacidade de mobilização da extrema-direita. Como um exército do mal, em poucos dias tomou progressivamente ruas e cidades, mostrando que o ódio não se limita a gritos de ordem, mas tem corpo, armas e sangue. Os riscos do nacionalismo, do extremismo e da intolerância não são teóricos ou imaginados: são reais e capazes de impor o caos com operações disseminadas em grupos estruturados e através das redes sociais.
Só por ingenuidade se pode acreditar que a ameaça da extrema-direita é um assunto exagerado pela comunicação social e que meia dúzia de sinais mais violentos não deve causar preocupação. Importa, pelo contrário, continuar a fazer perguntas incómodas. Que capacidade operacional têm os grupos extremistas? Que grau de organização apresentam, por exemplo em Portugal? Que vigilância têm as autoridades exercido sobre eles, quando assistimos a incidentes cada vez mais ostensivos em eventos e locais públicos? Este é um tema que nos deve convocar a todos, porque só unidos na defesa dos valores democráticos travaremos a violência, a xenofobia e a intolerância. Tal como nas ruas de Londres a união e os gritos antirracistas ocuparam as ruas, tomando-as antes que o ódio o fizesse.
Inês Cardoso – Jornal de Notícias -11 agosto, 2024

2.8.24

OPINIÃO: Polémicas instantâneas

A indignação tem, nos tempos que correm, rastilho curto. Em três ou quatro dias já se escreveram milhões de caracteres sobre a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, ainda que declarações e esclarecimentos posteriores sejam importantes para a reflexão. São muitos os argumentos estéticos ou históricos (nomeadamente sobre o contexto e as várias versões do “Festim dos deuses”) em confronto, mas seria porventura mais útil trabalhar sobre a já diagnosticada facilidade com que saltamos de caso em caso com uma agressividade crescente.
François-Xavier Bustillo, cardeal da Córsega, distingue-se do coro de críticas expresso em comunicado pelos bispos franceses pelo tom conciliador. Sublinhando a necessidade de ir à fonte e ouvir as explicações do autor da cena em causa, Bustillo apelou à unidade: “Não é saudável viver em polémicas incessantes”. O diretor artístico da cerimónia, Thomas Jolly, que justificou a inspiração na mitologia e o objetivo de recriar uma festa pagã, recorre ao mesmo desejo de união e sublinhou que quis promover uma iniciativa que “reparasse” e “reconciliasse”.
Não deixa de ser paradoxal que os esforços de inclusão suscitem, em tantos momentos, mais divisionismo do que a desejada unidade e igualdade. Estamos coletivamente mais tribais e alinhados com quem pensa exatamente como nós, mas com cada vez mais dificuldade em respeitar o outro e a sua diferença. Nesse aspeto, da esquerda à direita o erro é o mesmo: o excesso de reatividade e a incapacidade de ouvir (sobretudo antes de criticar).
Paris, com tudo o que possa ter de falha e de imperfeição, ofereceu momentos marcantes e primou pela absoluta diferença. Pode ser questionável a forma como alguns dos “valores da República” foram exacerbados, mas se tentarmos olhar com limpidez para o guião, teremos no mínimo de admitir que houve uma tentativa de abraçar a utopia e a plena liberdade e igualdade. E talvez valha a pena questionarmos se não está a faltar-nos, e muito, a fraternidade que completa o lema da Revolução.
·       Inês Cardoso - 31 julho, 2024
 

1.7.24

OPINIÃO: A democracia não é um jogo

As imagens de um Emmanuel Macron isolado, perdido no labirinto em que lançou a França ao dissolver o Parlamento na noite das eleições europeias, têm dominado o espaço mediático. A revista “The Economist” lançou na capa uma bandeira tricolor em que o branco central desapareceu, substituído por nuvens: o centro está condenado a cair. A aproximação às urnas, nesta primeira ronda das legislativas, agigantou a incompreensão pela arrogância do presidente francês, na sua incapacidade de lidar com a ruína do seu próprio espaço político.
Nas últimas semanas multiplicaram-se as análises às causas da atração dos jovens franceses pela extrema-direita. O desempenho de Jordan Bardella, jovem líder da União Nacional (RN), no TikTok ajuda a explicar o fenómeno, mas é no cruzamento entre o difícil acesso à habitação, a imigração e a criminalidade que se encontra o principal detonador. Pouco importa que muitos dados objetivos desmontem os fantasmas em torno dos estrangeiros. A xenofobia tornou-se cada vez mais clara e assumida em posições públicas, tanto em ações de campanha como em vídeos e declarações de cidadãos anónimos.
Ainda que obrigados por razões profissionais e éticas à neutralidade, muitos jornais assumiram o posicionamento de barreira à extrema-direita. É fácil de explicar porquê: olhando para trás, para as votações antissociais, antiecológicas e antifeministas da União Nacional, e perspetivando o que possa ser uma França dominada pela intolerância e pelo clima de guerra civil, o momento é de mobilização cívica. Defender a democracia é uma missão essencial da informação e do jornalismo.
O que se passa em França, hoje e no próximo domingo, não diz respeito apenas aos franceses. Inquieta todos os que acreditam em valores como a igualdade e a equidade, a tolerância, a livre circulação num mundo em que todos temos direito a ser inteiros. A tentação do experimentalismo e a atração por discursos demagógicos, que simplificam o mundo dividindo-o, são um perigo. A democracia não é um jogo. E veremos até onde nos leva o veneno dos extremos.

* Inês Cardoso - Jornal de Notícias -30 junho, 2024 


21.6.24

OPINIÃO: Agarrado ao poder

O ambiente político muito particular da Madeira permite a Miguel Albuquerque jogar com a estatística. É dos poucos candidatos que, a cada ida às urnas, pode ter como quase certa a eleição. A constância monocromática do voto na região levou-o a esticar a corda, no arranque do debate do programa do governo regional. Caso a oposição chumbe o programa, insiste em nova corrida eleitoral. A terceira no espaço de menos de um ano.
Sendo uma ciência exata, a matemática em política sujeita-se a distorções. Sempre partindo da mesma premissa – de que é preciso respeitar a vontade dos eleitores expressa nas urnas -, sabemos o quanto pode divergir a leitura feita por diferentes partidos dessa mesma vontade. Num cenário fragmentado, em que nem o PS conseguiu capitalizar o pior resultado de sempre do PSD, nem este conseguiu encontrar aliados suficientes para criar uma maioria estável, prevalece a tática do “passa-culpas” na hora de encontrar responsabilidades pela crise.
Por muito que Miguel Albuquerque procure encostar-se a números para insistir na tese de que é sua a legitimidade para governar, há dois dados incontestáveis. Um é o de que teve em maio o pior resultado de sempre do PSD-Madeira. Outro é de que poderia ser encontrada uma solução caso estivesse disposto a afastar-se, entregando o poder a um novo rosto social-democrata.
Indiferente à fragilização e suspeição que o rodeia nos últimos meses, surdo perante as críticas de todos os quadrantes (incluindo no seu próprio partido), incapaz de colocar o interesse das populações acima do seu próprio interesse, Miguel Albuquerque parece uma lapa agarrada à cadeira do poder. Não mostra disponibilidade para negociar ou para ceder um milímetro. Quem sabe se tanta intransigência não poderá acabar, uma vez na vida, por fazer cair por terra certezas matemáticas.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 19 junho, 2024 


16.6.24

OPINIÃO: As feridas do Interior

Completa-se amanhã mais um ano sobre o incêndio que mais vítimas causou no país e é provável que o tema entre pouco no espaço mediático, visto que o 10 de Junho já passou por Pedrógão. Ouviram-se odes ao país inteiro, à ruralidade, à coesão social e à resiliência. Prometeu-se que será desta que as medidas para corrigir assimetrias serão concretizadas e que as políticas de valorização da metade mais esquecida do país não ficarão na gaveta. Para o ano, muito provavelmente, voltaremos a ouvir reflexões idênticas.
A comoção com que ouvimos o bombeiro Rui Rosinha denunciar a dor das marcas que tem na pele é breve e desaparece após as cerimónias. Aliás, o diagnóstico do presidente da República focou-se nos incêndios como causa maior do sofrimento, quando estes são uma consequência, não a causa, do estado do Interior. Os fogos são a face visível de um território despovoado, desorganizado e sem capacidade económica para criar dinâmicas que contrariem este estado de coisas.
Além disso, o país não precisa de ser mais igual - nem deve desejar sê-lo. Diferentes regiões têm necessidades e características diversas. Exige-se que haja igualdade de oportunidades, o que por vezes implica tratar de forma diferente o que é efetivamente desigual. Percebendo o óbvio: não é sequer discriminação positiva, trata-se simplesmente de adequar políticas às diferentes regiões. O que, parecendo simples, tem sido obstaculizado por uma visão centralizada que nem sequer consegue acelerar medidas básicas de desconcentração e decisão regionalizada.
A intervenção do bombeiro Rosinha não foi sobre incêndios, foi sobre a vida de todos os dias para além deles. Como se tenta, uma vez e outra, “transformar a dor em esperança”. Nem sempre conseguimos, ouvimo-lo confessar. Mas nem por isso houve dele, como não há da generalidade desses territórios que resistem e procuram redesenhar-se todos os dias sem deixarem de ser genuínos, cedência à amargura. A vida renasce sempre entre as cinzas. Mas é dramático que a natureza faça tantas vezes sozinha aquilo que os sucessivos governos se esquecem de apoiar.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias -16 junho, 2024 

28.1.24

OPINIÃO: O lodo e a raiva

Há uma leitura benévola dos furacões judiciais que a todo o momento continuam a abater-se sobre o sistema político: a justiça, ainda que lenta, funciona e chega a todos os poderes. Em teoria, uma boa notícia, meio século depois da promessa de uma democracia saudável em que qualquer cidadão tem os mesmos direitos e deveres independentemente da sua condição. O problema é começarmos a estreitar a perspetiva e a analisar ao detalhe as consequências desta torrente de casos mediáticos.
Do lado da justiça, desde logo, temos uma preocupante fuga seletiva de informações que potencia a justiça-espetáculo e a circulação no espaço público de elementos parciais que dificultam o esclarecimento e a avaliação contextualizada dos processos. Temos, adicionalmente, uma morosidade que deita por terra a ideia de eficácia e que mostra em toda a sua dimensão a total assimetria entre arguidos desprotegidos perante o sistema e os que dispõem de meios para recorrer a todos os expedientes processuais e mais algum.
Quando nos viramos para a política, o risco é igualmente evidente. A dimensão e velocidade de surgimento de operações e suspeitas de crimes graves, cometidos no exercício de funções públicas, minam os partidos ligados à governação e descredibilizam a função política. Se há hoje uma perceção de que a corrupção é uma doença endémica e de que os políticos são todos iguais, muita da responsabilidade é dos próprios titulares de cargos públicos e dos partidos, que têm sido incapazes de impor padrões éticos exigentes.
Aqui chegados, temos dois cenários possíveis. Um deles é o crescimento dos populismos, que se alimentam do lodo mesmo quando afirmam querer combatê-lo. O outro é a capacidade de autorregulação por parte dos partidos e a sua efetiva consciência de que a democracia não é eterna e só sobrevive com a defesa intransigente dos seus valores fundadores. Celebrar Abril é assumir que há muito a reconstruir, mais do que a recordar. Que há erros de percurso que importa urgentemente corrigir. Sem essa visão coletiva, exigente e quase utópica, seremos consumidos pela raiva. Ela espreita-nos em cada canto das redes sociais e da vida pública, em marchas que se anunciam sem vergonha, em extremismos que nos desequilibram como comunidade. Resta-nos ser intransigentes a esvaziá-la.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 28 janeiro, 2024 

21.1.24

OPINIÃO: As notícias, quem as faz e quem as lê

É provável que o leitor se sinta algo confuso com o recente bombardeamento de notícias sobre o Global Media Group, sobre modelos de financiamento dos media, sobre o futuro do setor e as medidas de controlo da propriedade. Nos últimos dois meses uma crise de contornos inéditos no grupo que detém o JN (entre outros títulos) fez explodir um debate imprescindível, mas que estava adormecido, sobre o futuro do jornalismo e o seu contributo para uma democracia forte.
Depois de sete anos de pausa, o Congresso dos Jornalistas voltou estes dias a refletir sobre os problemas da classe e do consumo de notícias e os partidos políticos viram-se forçados a explicar com clareza o que defendem quanto à regulação, eventuais apoios diretos ou indiretos e o papel que o Estado deve desempenhar por uma comunicação social de melhor saúde. Uma miríade de temas que alimentou vários dias de congresso e permite infinitas crónicas.
Pelos piores motivos, a crise do JN e dos outros títulos do GMG acelerou o olhar do país para o tema. Mas as redações continuam a trabalhar em condições extremas, apesar dos muitos passos dados neste caminho de pedras. Ao dia de hoje os trabalhadores, desde jornalistas a designers e todos os que fazem o jornal que lhe chega às mãos ou ao ecrã, estão ainda sem receber o salário de dezembro e o subsídio de Natal. As palavras têm-nos faltado em muitos momentos mas, apesar do nosso desconcerto, continuamos a produzi-las diariamente aos milhares.
Um jornalista não pode fazer notícias condicionado, nem vulnerável. Não se pode permitir que as redações sejam espezinhadas como têm vindo a ser, ou que os conselhos de redação percam voz, ou que as administrações ignorem que um jornal, uma rádio ou uma televisão não são uma fábrica de notícias. São muitos os leitores que diariamente nos manifestam apoio e perguntam como ajudar. A melhor forma de apoiar é simples: ler notícias, comprar jornais, subscrever assinaturas, interagir connosco, manter uma atitude crítica sobre a informação e os seus efeitos. O JN continuará o seu rumo, maior do que os que em cada momento vão passando por ele. E é desse papel que persiste que todos coletivamente precisamos.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 21 janeiro, 2024 

10.1.24

OPINIÃO: Não tentem meter-nos medo

Há poucos sinais seguros para as eleições de 10 de março, mas um é quase certo: dificilmente haverá um partido com maioria absoluta. Razão pela qual muitas das intervenções dos líderes partidários e recados lançados em análises políticas se debruçam sobre configurações possíveis de governo. Quem namora ou pisca o olho a quem, com que partidos admite cada dirigente assumir compromissos sérios, em que camas assume que nunca se deitará.
O tema da governabilidade é relevante, mas convém não tentar condicionar os eleitores com cenários ou aritméticas que excluem opções em função do voto útil. Não há votos inúteis, mesmo que deles não resulte a eleição de ninguém. Dizer que o povo é quem mais ordena não pode ser um simples slogan em mensagem de Ano Novo, mas o respeito efetivo pelas escolhas feitas nas urnas.
É verdade que os líderes partidários devem ser transparentes a dizer com quem admitem aliar-se. Mas é igualmente exigível que digam com clareza como vão comportar-se na oposição e como lidará um Parlamento fragmentado com um governo minoritário. Uma democracia não se constrói só em maioria. Amadurece na negociação e sedimenta-se na oposição. Respeitando os portugueses e o peso efetivo das escolhas de cada um.
Não faz qualquer sentido diabolizar as minorias. Nem dramatizar excessivamente o tema da (in)governabilidade. Há um momento de dar a palavra aos eleitores. E há depois disso a exigência de que os atores políticos tenham a capacidade de ouvir o que lhes é dito. Não tentem assustar-nos com o risco de uma dissolução rápida e de sucessivas eleições. A Europa está cheia de exemplos de longas negociações políticas que nem por isso colocaram em causa a economia e a estabilidade desses países. Há sempre soluções para governar. Assim haja programas promotores do desenvolvimento e da liberdade, ideias para criar futuro e carisma na liderança.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 07 janeiro, 2024