4.9.25

Reconhecer a Palestina: um passo rumo à paz ou um disfarce diplomático?

Nos próximos meses, tudo indica que assistiremos ao reconhecimento do Estado da Palestina por parte de países como França, Reino Unido, Austrália, Canadá, Malta e Portugal. Estes juntar-se-ão aos cerca de 145 países que já reconheceram o Estado da Palestina desde 1988.

Muitos observadores consideram que este passo diplomático já vem com um longo atraso. Em 1994, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) – o único representante legítimo do povo palestiniano –, sob a liderança de Yasser Arafat, assinou os Acordos de Oslo, comprometendo-se com a solução dos dois Estados. Com Oslo, os palestinianos aceitaram e reconheceram o Estado de Israel com base nas fronteiras de junho de 1967. Esperava-se que Israel retribuísse, reconhecendo o Estado da Palestina, mas isso nunca aconteceu. Além disso, a comunidade internacional, dominada pelos países ocidentais, doou milhares de milhões de dólares em projetos supostamente destinados a apoiar o futuro Estado da Palestina, mas depois evitou comprometer-se com o reconhecimento político do Estado cuja criação supostamente financiava.

Céticos apressaram-se a classificar este reconhecimento como um gesto vazio – simbólico, mas com pouco impacto concreto na realidade no terreno, já que toda a zona continuará sob controlo israelita, incluindo os territórios definidos pelo direito internacional como ocupados. O ainda-por-reconhecer Estado palestiniano não tem soberania sobre o seu território terrestre, marítimo ou aéreo, nem sobre as suas fronteiras ou redes de comunicação. A sua economia continuará a ser manipulada pela largamente dominante economia israelita, o seu mercado continuará a ser explorado e a segurança da sua população permanecerá, na melhor das hipóteses, precária.

Particularmente porque as iniciativas previstas carecem de clareza quanto às fronteiras dentro das quais será reconhecido o Estado da Palestina, várias questões diplomáticas permanecem sem resposta. Países como França e Reino Unido mantêm há anos consulados em Jerusalém Oriental; serão agora elevados a embaixadas? Poderão as pessoas palestinianas viajar livremente para os países que reconhecem o Estado da Palestina e beneficiar de isenções de visto semelhantes às dos titulares de passaporte israelita? No plano económico, passarão os produtos palestinianos a ter tratamento preferencial nos mercados europeus, tal como os produtos israelitas? Podemos esperar um Acordo de Associação com a Palestina que elimine ou reduza tarifas e outras barreiras comerciais para bens produzidos no Estado palestiniano?

Muitos de nós no movimento de solidariedade vemos este reconhecimento como uma tentativa de lançar areia para os olhos do mundo. A principal questão neste momento não é o reconhecimento político, independentemente da sua moralidade ou viabilidade. A urgência agora é parar o genocídio e expôr e condenar os crimes de guerra e crimes contra a humanidade que Israel comete à vista de todos, nos nossos ecrãs, todos os dias. Não é controverso afirmar que a ação mais moral a tomar neste momento é parar ativamente a fome deliberada e a matança desenfreada. Quatro agências das Nações Unidas – Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa Alimentar Mundial (PAM) e Organização Mundial da Saúde (OMS) – confirmam agora que a Cidade de Gaza e arredores estão a viver uma situação de fome. O Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC), utilizado por governos e organizações internacionais para avaliar os níveis de fome no mundo, elevou a classificação da Faixa de Gaza para a Fase 5, a mais alta e severa, confirmando que mais de meio milhão de pessoas enfrentam condições "catastróficas", caracterizadas por "fome, miséria e morte".

A intervenção internacional para pôr fim a esta agressão está, sem dúvida, muito atrasada, e os apelos para parar o fornecimento de armas a um exército que comete diariamente crimes de assassinato indiscriminado, destruição massiva e fome estão a intensificar-se. No entanto, há a preocupação de que os países ocidentais estejam a tentar desviar a atenção da sua própria cumplicidade. O reconhecimento político parece positivo e construtivo mas, nos bastidores, os mesmos governos continuam a negociar com Israel e a fornecer componentes militares ao Estado que ativamente nega a existência da Palestina e procura apagar a identidade coletiva do povo palestiniano.

Recentemente, a Ministra dos Negócios Estrangeiros da Austrália, Penny Wong, alertou que “há o risco de não restar nenhuma Palestina para reconhecer”. A matança em massa e a fome, somadas aos planos israelitas para voltar a ocupar Gaza com os seus próprios cidadãos, colocam em risco não só a viabilidade de Gaza em si, mas também a possibilidade de criação de um Estado em todos os territórios palestinianos reconhecidos internacionalmente como ocupados. Em maio deste ano, o governo israelita aprovou a criação de 22 novos colonatos judaicos na Cisjordânia, e anunciou agora em agosto um plano de construção de cerca de 3,400 habitações na zona conhecida como E1 — o único corredor que resta às pessoas palestinianas para se deslocarem entre o norte e o sul da Cisjordânia. Esta decisão anula a viabilidade de uma solução de dois Estados. O aumento da presença de colonos e um governo israelita extremista, que promove a impunidade e a supremacia judaica, resultou numa escalada dramática da violência contra as pessoas palestinianas na Cisjordânia, criando um ambiente coercivo que acelera o seu deslocamento e facilita o controlo ainda mais profundo sobre o território e a vida quotidiana.

Torna-se, portanto, vital reformular o reconhecimento do Estado da Palestina como o reconhecimento do povo palestiniano enquanto coletivo nacional. Toda a crítica anterior é válida, mas devemos acolher o reconhecimento como uma afirmação do nosso direito a viver livres da ocupação, do racismo e da exploração. O reconhecimento deve permitir-nos celebrar a nossa história, cultura, língua e identidade, independentemente das realidades políticas que se venham a desenvolver.

O reconhecimento pode também abrir portas a novas ferramentas diplomáticas, quadros legais e até oportunidades políticas para avançar na defesa de uma Palestina verdadeiramente livre, soberana e independente. O reconhecimento  não deve ser como uma folha de figueira, que serve para encobrir – deve assinalar o início de uma mudança, não o fim de um processo. Para ter impacto, deve ser seguido de medidas concretas: um embargo de armas, suspensão de privilégios comerciais, aplicação de decisões legais internacionais e garantias de direitos a pessoas refugiadas. O reconhecimento pode ser um ponto de viragem – mas apenas se for sustentado por uma pressão real que provoque mudanças no terreno.

Perante a inércia dos governos ocidentais, a crescente indignação pública e a solidariedade crescente com o povo palestiniano em todo o mundo são visíveis e comoventes. Devem ser alimentadas e incentivadas para se tornarem mais eficazes e estratégicas, pois o seu sucesso será medido pela capacidade de encontrar formas de desafiar e mudar políticas governamentais que, durante décadas, apoiaram Israel independentemente das suas ações. As campanhas lideradas, sobretudo, por organizações da sociedade civil, instituições de ensino e organizações comerciais do setor privado devem focar o seu discurso em princípios universais concretos: liberdade, justiça, dignidade e responsabilização.

Ligar lutas pela liberdade em todo o mundo à luta do povo palestiniano é uma das formas mais eficazes de alargar o movimento, garantindo a sua inclusão e caráter internacional. Do mesmo modo, a sustentabilidade de qualquer solução deve assentar na justiça – tanto na reparação de injustiças históricas como no avanço para novas realidades políticas –, acima de tudo, na implementação do direito de retorno e na criação de soluções justas para os refugiados palestinianos.

Os palestinianos não são filhos de um Deus menor. O seu direito a viver com dignidade – não apenas como indivíduos, mas também como nação e povo indígena – é fundamental. Setenta e sete anos após o início da Nakba – o processo de desumanização, subjugação e colonização do povo e da sua terra que continua até hoje – devemos lutar para proteger e restaurar o respeito pela humanidade do povo palestiniano.

Depois da destruição em curso em Gaza e o assassinato do seu povo terminar, será necessário fazer uma reavaliação. Devemos continuar a falar sobre a responsabilidade pelo que foi feito. É necessário questionar o porquê, onde e – sobretudo – quem. O mundo exigirá, com razão, inquéritos independentes. As provas devem continuar a ser recolhidas. Devemos ser firmes em levar à justiça aqueles que cometem genocídio. Devemos isso às vítimas, onde quer que estejam, mas também a nós próprios – pois a luta por justiça definirá o mundo que deixaremos aos nossos filhos.

O momento atual é sombrio e o sangue continua a ser derramado – mas devemos manter o nosso compromisso com aquilo que é, inquestionavelmente, uma luta justa e moral. A Palestina tornou-se num teste decisivo para a humanidade. Devemos orgulhar-nos de fazer parte de uma luta que inclui todos, um movimento único que une pessoas independentemente da religião, etnia, género ou cultura. Os palestinianos estão a abrir novos caminhos de libertação nacional que vão além do nacionalismo, abraçando o reconhecimento universal de princípios e valores que são intrinsecamente globais e humanos.

MAHMOUD MUNA  - LIVREIRO PALESTINIANO in www.fumaca.pt