O 25 de Abril é um problema para sectores da direita porque lembra-nos
que a democracia portuguesa nasceu contra uma ditadura de direita.
Lembra-nos que os principais actores da direita institucional
contemporânea não têm raízes limpas desse período.
Lembra-nos que o antifascismo é uma luta que não lhes pertence...Nem no
passado nem no presente.
Então, como é que se reescreve a história sem parecer que se está a
reescrever a história?
Inventando um “segundo momento fundador” — o 25 de Novembro — que
coloca a direita como protagonista da salvação nacional.
Mas até isso é falso.
O 25 de Novembro não foi “da direita”.
Foi uma operação liderada politicamente por Mário Soares e sustentada
militarmente pelos moderados do MFA — o Grupo dos Nove.
E o seu objectivo não era impor uma agenda de direita, era sim travar
qualquer deriva autoritária, fosse ela a tentativa de um Poder Popular tutelado
por sectores da esquerda militar, fosse a violência da direita bombista que
atuava no Norte.
Ou seja: Novembro não foi a vitória da direita — foi a vitória dos
democratas.
A narrativa da direita tenta transformar “O país foi libertado do
fascismo” para “O país foi salvo de dois extremismos: o da DIREITA e o da ESQUERDA.”
Assim, a direita deixa de estar historicamente marcada como aliada do
fascismo e reaparece como “força moderadora”.
É por isso que, para a direita, é essencial destruir a ideia de que a
democracia portuguesa nasce de uma revolução popular. Porque isso valida, no
imaginário nacional:
- Estado Social
- Constituição social-democrata
- Direitos laborais
- Papel central do público
- Agenda progressista
Tudo aquilo que a direita contemporânea, especialmente a sua ala
liberal-radical, detesta.
Como se combate, então, uma origem incómoda?
Criando uma origem alternativa.
Se o 25 de Novembro for reconstruído como “a verdadeira fundação da
democracia adulta”, tudo o que Abril representa — igualdade, direitos sociais,
participação popular, soberania económica — passa a ser reclassificado como
“excessos revolucionários”.
O PS não precisa de disputar Abril — tem-no inscrito na sua história.
Tem Soares, tem o processo constitucional, tem lutas, prisões, torturas e
perseguições.
A direita não.
A direita vive numa espécie de inferioridade simbólica crónica, não tem
um grande evento de libertação para brandir como “o nosso contributo para a
democracia”.
Então faz o quê?
Pega em Novembro e transforma-o num tótem identitário.
Daí a repetição exaustiva:
“Foi quando a democracia começou de verdade.”
“Foi quando se evitou uma ditadura de esquerda.”
“Foi tão importante como Abril.”
“Foi a segunda libertação.”
É tudo falso? Sim.
É eficaz? Também.
No campo simbólico, a repetição cria realidade — esta é a parte mais
pérfida e, ao mesmo tempo, mais inteligente.
Dizer frontalmente “Abril foi exagerado” seria suicídio político.
Então a direita faz o movimento lateral:
“Não estamos a diminuir Abril… só queremos reconhecer igualmente
Novembro.”
Mas se ambos têm o mesmo peso,
Abril vale menos.
Se há duas fundações,
a fundação original esvazia-se.
Se a democracia só fica “madura” em Novembro — Abril vira infantilismo
revolucionário.
Chama-se "false equivalence framing" colocas duas coisas de
escala e natureza diferentes lado a lado e declaras “valem o mesmo”.
É como equiparar o invasor ao invadido na guerra da Ucrânia.
No fim, não é Novembro que sobe — é Abril que encolhe.
É assim que se move uma maioria, mil micro-ajustes de linguagem até a
memória ceder.
É um ataque por diluição, não por confronto.
Duro. Eficaz. Profundamente manipulador.
E para quê? Porque Novembro funciona como a arma simbólica perfeita
para legitimar:
- revisões constitucionais
- ataques ao Estado Social
- redução de direitos laborais
- privatizações
- reconfiguração do papel do Estado
Por isso Novembro se tornou tão importante nestes discursos, atua como
solvente simbólico do projecto social de Abril — tirar o que foi conquistado
pelo povo e entregar a quem o explora.
É por isso que hoje a direita grita Novembro com mais força do que quem
o protagonizou.
O 25 de Novembro tornou-se, para a direita, uma ferramenta política
multifunção:
- limpa o passado
- cria um mito fundador alternativo
- relativiza Abril
- transforma a esquerda como ameaça simétrica ao fascismo
- legitima projectos actuais de revisão constitucional e económica
- transforma a direita em protagonista da democracia, quando
historicamente pouco fez por ela
É isto.
Não é história — é estratégia e manipulação.
·
Eduardo Maltez Silva
