A justiça confronta-se com problemas
tão sérios, da morosidade às omnipresentes escutas, que só essa enorme latitude
de temas polémicos justificará a escassa reação que mereceram as declarações da
procuradora-geral da República, no Parlamento, sobre os “constrangimentos”
causados pela predominância de mulheres na magistratura do Ministério Público.
Quando questionada sobre a falta de recursos humanos, Lucília Gago entendeu
acentuar as ausências causadas pela gravidez, ou pior ainda pela gravidez de
risco, as horas para amamentação ou a necessidade de assistir filhos menores.
De uma penada, Lucília Gago
não se limitou a atacar os direitos das mulheres e a expor o total
desequilíbrio a que se sujeitam na compatibilização entre vida profissional e
familiar. Pôs em causa conquistas civilizacionais e direitos que deveriam estar
adquiridos. Só que não estão e os próprios sindicatos do setor, incapazes de
pôr de lado o corporativismo na leitura da audição, teceram elogios à
procuradora-geral e ignoraram os pontos polémicos, incluindo em matéria de
direitos laborais.
As declarações de Lucília
Gago são um bom exemplo do quanto há de ilusório no caminho da igualdade e de
como tão facilmente se normalizam comportamentos e declarações que expõem de
forma tão descarada a discriminação. E é tão fácil encontrar esse padrão em
tantos outros desequilíbrios na nossa vida coletiva. É o caso, pegando noutro
exemplo da semana, da profunda injustiça no acesso à educação, um direito
protegido constitucionalmente.
Enquanto famílias com
capacidade financeira pagam explicações para suprir a falta de professores em
determinadas disciplinas, quem não dispõe dos mesmos recursos vai ficando para
trás. Bem podemos desfiar teorias sobre o mérito, fingindo que, se nos
esforçarmos, todos podemos conquistar o mundo. A verdade é bem diferente: a
escola está longe de oferecer a prometida igualdade de oportunidades. E numa
sociedade que tanto precisa de empatia e de entreajuda, normalizar as
desigualdades é meio caminho andado para não as corrigir.
Inês Cardoso – Jornal de
Notícias - 15 setembro, 2024