16.9.24

OPINIÃO: A normalização das desigualdades

A justiça confronta-se com problemas tão sérios, da morosidade às omnipresentes escutas, que só essa enorme latitude de temas polémicos justificará a escassa reação que mereceram as declarações da procuradora-geral da República, no Parlamento, sobre os “constrangimentos” causados pela predominância de mulheres na magistratura do Ministério Público. Quando questionada sobre a falta de recursos humanos, Lucília Gago entendeu acentuar as ausências causadas pela gravidez, ou pior ainda pela gravidez de risco, as horas para amamentação ou a necessidade de assistir filhos menores.
De uma penada, Lucília Gago não se limitou a atacar os direitos das mulheres e a expor o total desequilíbrio a que se sujeitam na compatibilização entre vida profissional e familiar. Pôs em causa conquistas civilizacionais e direitos que deveriam estar adquiridos. Só que não estão e os próprios sindicatos do setor, incapazes de pôr de lado o corporativismo na leitura da audição, teceram elogios à procuradora-geral e ignoraram os pontos polémicos, incluindo em matéria de direitos laborais.
As declarações de Lucília Gago são um bom exemplo do quanto há de ilusório no caminho da igualdade e de como tão facilmente se normalizam comportamentos e declarações que expõem de forma tão descarada a discriminação. E é tão fácil encontrar esse padrão em tantos outros desequilíbrios na nossa vida coletiva. É o caso, pegando noutro exemplo da semana, da profunda injustiça no acesso à educação, um direito protegido constitucionalmente.
Enquanto famílias com capacidade financeira pagam explicações para suprir a falta de professores em determinadas disciplinas, quem não dispõe dos mesmos recursos vai ficando para trás. Bem podemos desfiar teorias sobre o mérito, fingindo que, se nos esforçarmos, todos podemos conquistar o mundo. A verdade é bem diferente: a escola está longe de oferecer a prometida igualdade de oportunidades. E numa sociedade que tanto precisa de empatia e de entreajuda, normalizar as desigualdades é meio caminho andado para não as corrigir.
Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 15 setembro, 2024