De repente, a vida mudou. Bastou um vírus, um daqueles que cientistas subfinanciados vêm alertando que podem, a qualquer momento, ultrapassar a barreira das espécies, viajar por este planeta globalizado, alojar-se num ser humano e infectá-lo, a ele e aos que fazem parte das suas redes de contactos. Em particular onde os contactos são estreitos e variados, a demografia densa e envelhecida, a pobreza forte e os sistemas imunitários frágeis.
De repente, a população aceita ficar em casa para salvar vidas, as suas e as dos outros, a dos seus pais e as dos seus avós, a dos doentes crónicos mais fragilizados, e ganha uma maior consciência de como todas as vidas estão estreitamente ligadas. Fica-se em casa sabendo que, no mesmo passo, se está a construir uma crise económica de grandes dimensões. Nem se pode dizer, em países como Portugal, que os cidadãos não saibam o que é uma grande crise. A crise foi uma dura constante nos últimos dez anos, ainda agora se estava a recuperar. Há pois memória. Há rendimentos que pouco ou nada recuperaram. Há poupanças evaporadas. Há despesas que dispararam para alimentar lucros especulativos na habitação e rendas excessivas na energia. Há ritmos e durações de trabalho infernais, para salários que mal chegam ao fim do mês. Há vínculos laborais cada vez mais precários – e que anunciam um tempo de doença, desemprego e velhice profundamente desprotegido.
Portugal já estava a divergir da União Europeia desde a adesão à moeda única, mas a crise financeira de 2008, com os programas de austeridade a que as instituições da Troika condicionaram os seus empréstimos, vieram piorar tudo duradouramente. O objectivo foi cumprir regras orçamentais, e outras inscritas nos tratados europeus, que são reconhecidamente desfavoráveis para as economias periféricas da União. O preço a pagar foi elevado: subida do desemprego e da precariedade, quebra de rendimentos dos trabalhadores, cortes nos serviços públicos, a começar pela saúde, e uma dívida pública que, continuando a ser um bom negócio para os credores, serve também de garrote político às reversões que ficaram por fazer.
Há dez anos que se repete nas páginas deste jornal: a austeridade em saúde mata. Os cortes no Serviço Nacional de Saúde (SNS), tanto os impostos pela Troika como os avançados pelos neoliberais domésticos, cortaram camas em cuidados intensivos, cortaram ventiladores, cortaram nos profissionais capazes de nos tratar. Os cortes na saúde juntaram-se aos cortes que nos obrigaram a comer pior, a reduzir as consultas a que íamos e a medicação que fazíamos. Levaram-nos a poupar no aquecimento da casa e a limitar o tempo de descanso. Tornaram-nos frágeis face a qualquer crise que aí viesse, mas muito em particular face a uma pandemia para a qual não há, ainda, tratamento nem vacina.
A necessidade imperiosa de medidas de confinamento quase total resulta da insuficiência de camas de cuidados intensivos, da falta de equipamentos de protecção individual, do número limitado de profissionais de saúde com as especializações necessárias. Esta insuficiência foi construída pelas escolhas políticas neoliberais das últimas décadas, desde o primeiro cavaquismo. Países como a Alemanha podem dar-se ao luxo de gerir a crise da pandemia de outro modo. Portugal, como Espanha ou Itália, só com enorme prejuízo da sua economia e do seu tecido social pode tentar evitar o colapso dos serviços de saúde por excesso de internamentos. Só assim pode esperar evitar o máximo possível de óbitos na sua população. Em Portugal vai haver, ainda agora, seres humanos a morrer de Troika, de contas certas, de regras orçamentais europeias, de euro forte, de salvamentos de bancos.
Quando olhamos em volta vemos as imensas manifestações e gestos de solidariedade que a pandemia suscitou. Vemos também os que sempre defenderam o desinvestimento do Estado nos serviços públicos e a retirada de instrumentos de decisão aos poderes públicos virem agora apelar ao reforço do papel do Estado e das ajudas que este deveria disponibilizar. Podemos ser tentados a achar que, quando esta pandemia passar, porque ela vai passar, há condições muito melhores para, juntos, corrigirmos todas as falhas sistémicas agora à vista de todos. Podemos pensar que saberemos hierarquizar prioridades de investimento, por exemplo a saúde e não os bancos. Que saberemos revalorizar a investigação científica e o papel dos agentes educativos, com o investimento que estes sectores exigem. Que saberemos remunerar condignamente profissões durante tanto tempo invisíveis e que agora vemos que são essenciais à nossa existência, desde os profissionais da limpeza aos operadores de caixa de supermercado, passando pelos bombeiros e a protecção civil. Que saberemos reconhecer nos profissionais da cultura os responsáveis pela arrumação e higiene da nossa vida interior, aprendendo a pagar-lhes por isso. Que saberemos estender o perímetro das soluções públicas a todas as esferas de reprodução social da vida, por exemplo criando uma rede pública e universal de estruturas residenciais para idosos. Que saberemos recuperar o controlo público de sectores estratégicos, da energia à banca, levando o interesse colectivo expresso nas requisições civis em tempos de estado de emergência até à implantação de soluções duradouras, com a socialização ou até a nacionalização do que for necessário à preservação das nossas vidas.
Mas se nada fizermos não é isso o que se prepara. A União Europeia, onde os interesses são divergentes, dá sinais de tudo fazer para aplicar as mesmas receitas da crise anterior, sem partilha de riscos. Anunciam-se empréstimos condicionados a políticas de austeridade, a aplicar a seguir pelos Estados, no quadro do Fundo de Estabilidade. O governo de António Costa está consciente de que «a União Europeia ou faz o que tem de fazer ou acabará» (declarações a 27 de Março último), mas por agora parece conviver com a suspensão (e não denúncia) das regras dos tratados europeus. E além disso desenhou um plano de emergência para a economia que parece substituir os apoios de outrora aos bancos por apoios às empresas, continuando a operar uma inversão dos termos em que seria necessário actuar. Há medidas importantes, sem dúvida, mas o processo parece ter começado do avesso. Não seria muito mais benéfico, para evitar assimetrias de classe no desenho das medidas, começar, por um lado, por impedir despedimentos, garantir manutenção de rendimentos e assegurar a continuidade das receitas da Segurança Social e, por outro lado, impedir distribuições de lucros e dividendos pelas empresas? Se isto estivesse assegurado, condicionando as próprias medidas de apoio às empresas, e se estivessem também assegurados meios às autoridades de fiscalização das condições de trabalho, não se veriam hoje as ilegalidades e aproveitamentos da crise que estão a ser usados para atacar os direitos dos trabalhadores. Ainda há tempo de fazer as correcções necessárias.
Já da parte de quem sempre defendeu políticas neoliberais, não vale a pena contar com um momento de iluminação socialista. Para salvarem a própria pele, políticos, comentadores e meios de comunicação que sempre defenderam a corrosão do Estado em benefício de interesses privados precisam, momentaneamente, da nossa disciplina sanitária. A COVID-19 não se detém às portas das suas vivendas. Nem às portas de hospitais privados que vivem das transferências do público ou de empresas que esmagam salários para arrecadar lucros. Mas a seguir aproveitarão a nossa aceitação da perda de instrumentos de trabalho e de acção colectiva – como o direito à greve. Basta olhar para o que tem escrito o director do jornal Observador para ver que os neoliberais não mudaram uma linha ao seu pensamento: mesmo pedindo subsídios ao Estado, querem manter o direito de despedir. Os únicos aliados em que vale a pena confiar são aqueles que, achatada a curva da contaminação, continuarão a trabalhar para achatar a curva das desigualdades. E isso só se faz lutando por justiça social, por políticas de emprego e de rendimentos robustas, por um SNS forte e por um ecossistema sustentável.
Sandra Monteiro in "Le Monde Diplomatique" - Abril