29.10.23

OPINIÃO: Nada acontece do nada

O pedido de demissão imediata de António Guterres pela voz de comando do embaixador de Israel nas Nações Unidas não surpreende. Lidar com os conflitos sem admitir a procura de soluções e consensos é apanágio de autoritarismos que se prolongam por tempos de ocupação, sem admissão de contraditório. Há um certo odor a inimputabilidade. A cultura de cancelamento chegou agora ao secretário-geral da ONU, apenas e só porque se limitou a pugnar por um mundo que não se vista a preto e branco ou assuma cores carregadas consoante as circunstâncias ou interesses dominantes.
Uma agenda de maior dignidade. No fundo, o que se pretende de um secretário-geral da ONU. A reacção de Israel, após as declarações de Guterres no Conselho de Segurança, já estavam a ser preparadas desde a sua presença em frente à linha de fronteira de Rafah. “Em que mundo vive” Guterres, pergunta o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita? Num mundo que mudou a percepção do conflito em dias e que já não tem receio de afirmar o Estado palestiniano pelo medo da antítese sionista.
É um facto que os ataques do grupo islamista Hamas não aconteceram do nada. Em nenhum momento Guterres desculpou qualquer dos agressores. Pelo contrário, as suas reacções foram o que se espera de um mediador de conflitos. Como João Cravinho considerou, foram “cristalinas”. A reacção de Israel, vítima dos ataques hediondos de 7 de Outubro, diz tudo sobre o consentimento, omnipotência e inimputabilidade que gozou ao longo de décadas. De uma forma ou de outra, essa inimputabilidade histórica acabou. Em parte, porque as primaveras se fazem hoje nas redes sociais e o conhecimento, ainda que profundamente enviesado pela contrainformação, é uma arma. Sabe-se muito mais sobre o conflito israelo-palestiniano na última semana do que em décadas de discurso único e de percepção torcida. O Hamas é um demónio, mas já ninguém procura santos sem paradeiro neste conflito.
Há, porém, perguntas com respostas indesmentíveis. António Guterres foi, durante dez anos, alto-comissário da ONU para os refugiados e sabe bem do que está a falar. À questão de saber onde se encontram as vítimas, responde-se sem hesitação: as vítimas são pessoas nos povos dos dois estados, entregues aos extremismos. Um pouco como se o Plano Madagáscar da Alemanha nazi ainda sofresse votos de renovação para cada uma das formas de pronunciar o verbo genocídio, há “lados em ambos os lados” que preferem uma invasão terrestre ou aérea israelita que provoque a intervenção do Hezbollah, precipitando a entrada formal dos EUA e do Reino Unido na guerra e o aparecimento do Irão e de um Deus ou Alá que nos acuda.
Miguel Guedes - Jornal de Notícias - 27 outubro, 2023