Decorria o ano de 1949 e eu frequentava a terceira classe do ensino primário. Era meu parceiro de carteira o “Vardasca”, o qual não aprendia uma letra do tamanho da serra de S. Miguel. Assim que pressentia que o professor se preparava para lhe aplicar as reguadas respectivas por não saber patavina, fosse daquilo que fosse, dava “corda aos sapatos” e ala que se faz tarde, porta fora, deixando o “mestre” furioso, sem poder descarregar a sua ira.
Tantas vezes fugiu da escola, até que pai teve de o tirar, pois não andava ali a fazer nada. Teve como primeiro emprego guardar os porcos da adua. Passou do inferno para o céu, tinha o leão como fiel companheiro e ajudante.
Com um forte assobio, sem meter os dedos na boca e à ordem do “vai lá”, era certo e sabido que bacorinho que andasse tresmalhado, com alguns grunhidos à mistura, rapidamente se juntava aos restantes.
Durante as férias da Páscoa, fiz-lhe companhia, pois também os meus pais lá tinham um porquinho e assim evitavam ter de pagar o respectivo pão caseiro semanal.
Também os animais sentiam o que é a liberdade. Saíam da pocilga pela manhã, levados pelos donos respectivos até ao curral da Adua e logo que estivessem todos juntos, lá iam pelo "Nizorro" acima, fossando, comendo, bebendo e embogando-se na lama.
Todos tinham nome. O "Preto", o "Russo", o "Amadeu", e um que era o pior de guardar baptizou-o de “O professor”.
Aprendi o nome das courelas,de árvores a quem pertenciam, de pássaros e seus ninhos, vi cobras e lagartos em luta, percebi porque é, que o lagarto preso com a boca na boca da cobra, mas estava sempre metido dentro de uma parede de pedra seca.
Outro circuito era feito por vales e veredas onde não se via alma viva, regressando à aldeia já com a sombra da serra a dar pelo meio do Pé da Serra. As sombras eram para ele um relógio de alta precisão.
Chegados à aldeia, cada animal desatava a correr, cada um para seu lado, direitinho à sua pocilga, onde o esperava a tradicional vianda.
Regressei às aulas. Como eu admirava o meu amigo “Vardasca”, ele não aprendia, mas era corajoso, se eu ao menos, tivesse a coragem dele, também podia viver em liberdade. O professor batia, batia… ali havia sempre gritos e dores e eu só de ver e ouvir também o coração me batia desalmadamente...
* José Hilário