20.3.24

OPINIÃO: Quatro notas sobre eleições, resistência e o próximo ciclo

O tempo é de disputa de hegemonia na sociedade e no espaço público e de testemunho programático próprio de cada força política. Mas é também, urgentemente, de diálogo e de articulação das forças da oposição à esquerda, que devem começar desde já.
1. Com grandes financiamentos de uma parte relevante da elite económica, organizações de extrema-direita como o Chega e think tanks ultraliberais como o Instituto Mais Liberdade foram moldando, nos últimos anos, o espaço público online, procurando construir uma nova hegemonia do que se debate, dos termos em que se debate e do tom em que se debate. Em lugar da informação, da mediação jornalística e da opinião fundamentada e plural, há um permanente bombardeamento com dados mais ou menos truncados (é fácil “fazer os números falar” no sentido que quisermos) e, no caso da extrema-direita, com histórias falsas, narrativas distorcidas e discursos tremendistas para captar a indignação, mesmo que baseada em falsidades. Há uma geração que vem sendo socializada nesta cultura de crispação e de bufonaria protagonizada por influencers de direita e bots financiados pelos mais ricos. A Portugal chegou, com o atraso habitual, a tendência internacional do trumpismo e do bolsonarismo. Combatê-la é uma prioridade democrática.
2. O resultado destas eleições é, em grande medida, o efeito e o legado político da maioria absoluta do PS. Nos últimos anos, os salários não acompanharam a inflação, com os preços da alimentação a subirem muito mais que os rendimentos; os juros dispararam, penalizando quem tem empréstimo à habitação; a crise da habitação agravou-se, desde logo para os jovens; as carências do SNS ganharam maior visibilidade; a estagnação salarial convidou milhares a procurarem uma vida melhor noutros países. O governo privilegiou a acumulação de excedentes orçamentais ao investimento robusto na resolução destas crises e enredou-se numa sucessão de crises políticas internas que o degradaram ao limite, criando um forte sentimento de descrédito e de instabilidade, que a direita aproveitou. À má gestão política de António Costa, há que somar a ação do Ministério Público, ainda hoje falha em esclarecimentos cabais, mas que conformou o ambiente eleitoral. E a intervenção instabilizadora do Presidente da República. Falta de respostas aos problemas económicos e sociais e descrédito político foram o pasto fértil sobre o qual a extrema-direita cavalgou nos últimos meses, multiplicando também mentiras e explorando ressentimentos.
3. Para além da denúncia dos interesses milionários que financiam a extrema-direita, da luta cultural contra o liberalismo agressivo e contra os velhos preconceitos misóginos e racistas que existem de facto na sociedade portuguesa, a esquerda tinha a obrigação, para ganhar estas eleições, de se apresentar com uma alternativa política para as questões fundamentais - inflação, habitação, saúde, escola pública, salários. Uma alternativa que mostrasse balanço crítico e rutura com a maioria absoluta (e portanto, capacidade de resposta a quem estava justificadamente zangado com ela) e vontade de mobilizar as esquerdas para uma solução nova e conjunta. À esquerda do PS, no seu conjunto, não houve perdas, mas crescimento de votos. Ele foi todavia residual (de 12 para 13 deputados) e diferenciado para cada partido, não permitindo ainda reconstruir a força do milhão de votos de 2015. O discurso do PS nesta campanha, ao escolher acentuar a continuidade com o legado de António Costa e da maioria absoluta, descredibilizou a possibilidade mobilizadora da maioria das esquerdas como alternativa ao estado de coisas atual, facilitando a viragem à direita.
4. O tempo é de disputa de hegemonia na sociedade e no espaço público online e offline e de testemunho programático próprio de cada força política. Mas é também, urgentemente, de diálogo e de articulação, quer contra a governação de uma direita que se tem radicalizado, quer contra a agressividade da extrema-direita. A campanha da AD foi marcada por múltiplas intervenções que apontaram a regressão nos direitos sociais e civis (desde logo das mulheres), que repetiram preconceitos e tópicos da extrema-direita (como na comprovadamente falsa associação entre insegurança e imigração feita por Passos) e o programa do novo governo terá uma forte marca de classe, privilegiando a canalização de recursos para o privado, uma contra-reforma fiscal e benefícios aos patrões nas contribuições sociais. Uma articulação das forças da oposição à esquerda deve começar a ser tecida desde já. Ela servirá de resistência à política social e económica da direita, de referência popular de luta e de barreira à destruição dos direitos sociais e cívicos. Ela poderá ser uma prova pungente da força da igualdade na sociedade portuguesa. Mas poderá ser também uma afirmação de futuro, de um arco-íris de diversidade dentro do qual pode amadurecer uma alternativa política. O tempo é acelerado e este novo ciclo será porventura mais curto do que se imagina. Começar a construir o próximo é uma tarefa para já. O país há-de ser capaz de mostrar, nos cinquenta anos da Revolução, o seu apego à democracia e à Constituição. O 25 de abril na rua será a sua primeira oportunidade.
* José Soeiro in www.esquerda.net -18 de Março, 2024 
IMAGEM - 1º Maio 1974 (Lisboa) FOTO de Diogo Margarido