Na legião de chocados com o crescimento do Chega nas eleições passadas que, entretanto, apareceu desde domingo à noite, há uma corrente deveras bizarra (vou usar o exemplo de Henrique Raposo no Expresso, mas há muitos outros) que lança esta tese: o Chega vem substituir o PCP.
Raposo acha que o Chega “agarrou” o eleitorado do PCP. Cito: “Estou a falar da sociologia, da geografia humana e familiar do sul e dos arrabaldes de Lisboa. Este povo deu a sua força ao PCP e agora está a alimentar o Chega; são as mesmas terras, são as mesmas famílias.”
Olho para o mapa eleitoral do passado domingo e que vejo eu? O Chega venceu no Distrito de Faro, onde o PCP, em 50 anos de democracia, nunca venceu eleições. O Chega tem resultados no norte e no centro do país muito superiores ao que a CDU, mesmo nos seus melhores anos, alguma vez conseguiu. Aqui, portanto, a tese de Raposo e de muitos outros que o acompanham cai pela base.
Resta a ideia de essa transferência de votos se verificar nos distritos de Lisboa, Setúbal e nos do Alentejo, onde o PCP foi forte, como Raposo defende.
No Distrito de Lisboa, o Chega subiu 132 mil votos e o PCP desceu 10 mil. De onde vieram os 122 mil votos a mais que foram depositados no partido de André Ventura? Da CDU não foram, que não os tinha, nem os teve.
No Distrito de Setúbal, o Chega ganhou quase 63 mil votos. A CDU perdeu cerca de 4700. De onde vieram os 58 mil votos a mais do Chega?
No Distrito de Évora, o Chega ganha 10 mil e 600 votos e a CDU perdeu 1723. Os quase nove mil votos de diferença também vieram do PCP? Como?!...
Como é evidente a esmagadora maioria dos votos para André Ventura vieram da abstenção e dos maiores partidos portugueses, PSD e PS, para além dos que levaram ao afundamento do CDS nas eleições anteriores, mas essa conclusão óbvia parece não interessar a ninguém, essa conclusão verificável parece dever ser esquecida.
No Distrito de Santarém, moro numa pequena aldeia onde há pessoas que vivem do Rendimento Social de Inserção, um subsídio que o Chega já disse várias vezes querer diminuir drasticamente e, talvez mesmo, acabar com ele. Pois há pessoas nessas condições que declararam ir votar no Chega, num aparente suicídio financeiro através da urna eleitoral.
Dada esta maluquice, admito, por isso, que haja outras maluquices semelhantes e que alguns votantes tradicionais do PCP tenham votado no Chega ou que outros desiludidos com os comunistas num passado mais longínquo o façam agora -, mas transformar isso numa realidade sociológica estatisticamente relevante e consistente é, no mínimo, imprudente: basta ver a implantação no terreno do eleitorado do Chega para perceber que estamos a falar de uma composição geográfica (e, por isso, social) muito diferente da do PCP.
Estou a dizer que as classes trabalhadoras não votaram no Chega? Claro que não, todos os partidos receberam e recebem votos das classes trabalhadoras, mesmo aqueles que, na prática, não defendem os seus interesses.
O que acontece é que estas pessoas que procuram uma equivalência entre Chega e PCP, tão aparentemente indignadas com o ascenso da extrema-direita, acabam sempre por dirigir o tiro político para o mesmo inimigo de sempre, o seu verdadeiro adversário, aquele que, mesmo na mó de baixo, enfarinha as suas irreprimíveis emoções: os comunistas portugueses que, irritantemente, apesar de todas as crises, apesar dos seus erros, apesar das suas sucessivas quebras eleitorais e apesar de todas as declarações antecipadas de morte, ainda valem em Portugal mais de 200 mil votos e elegem 4 deputados, muito acima da extinção parlamentar que as sondagens, durante quase toda a campanha eleitoral, vaticinaram...
Ó verdadeiros, únicos e genuínos democratas: têm de trabalhar mais, porque ainda não foi desta que mataram o PCP.
* Pedro Tadeu - Público - 13. 3.2024