11.5.21

OPINIÃO: Disse mesmo unidade?

Quer se deseje ou não uma aliança da esquerda e dos ecologistas com vista às eleições presidenciais francesas do próximo ano, os termos deste debate confirmaram o analfabetismo geopolítico da maioria dos jornalistas. Porque, supondo que nenhuma divergência de política económica e social impede as formações situadas à esquerda de Emmanuel Macron de criar uma frente comum contra ele logo na primeira volta do escrutínio, será que se pode dizer o mesmo da política externa? O mais surpreendente é que esta questão não suscitou o interesse de ninguém. As relações com os Estados Unidos, a China, a Rússia; a política de França no Médio Oriente, em África, na América Latina; o poder de ataque? Nenhum destes temas parece ter sido abordado pelos dirigentes de esquerda no seu encontro de 17 de Abril último. Mas, em vez de se mostrarem surpreendidos com isto, os media preferiram reservar a sua glosa para questões tão decisivas para o futuro do país como as refeições vegetarianas nas cantinas escolares de Lyon, as «reuniões não mistas» de uma associação de estudantes ou a recusa de uma subvenção num aeroclube de Poitiers.
A tal ponto que, mesmo quando o promotor inicial da reunião unitária, Yannick Jadot, publicou uma análise de política externa neoconservadora, o seu conteúdo passou despercebido [1]. Contudo, várias passagens, que acreditaríamos terem sido escritas num gabinete do Pentágono, situam o dirigente ecologista à direita de Macron. Com efeito, Jadot atribui o «aumento das tensões internacionais» apenas à «agressividade crescente dos regimes autoritários que dirigem a China, a Rússia ou ainda a Turquia». Dir-se-ia, portanto, que para ele as provocações nunca se situam do lado dos Estados Unidos, da Arábia Saudita ou de Israel. O mesmo estrabismo atlantista surge quando Jadot reserva a Moscovo e a Pequim o monopólio das «notícias falsas», do apoio a «movimentos extremistas» ou da compra das «nossas empresas fundamentais». Parece esquecer as pseudo-«armas de destruição em massa» no Iraque, o apoio ocidental e saudita à Frente Al-Nosra síria (filiada na Al-Qaeda), ou a pilhagem americana que inflige multas extravagantes às empresas concorrentes e que obrigou a Alstom a tornar-se dependente da General Electric [2]. Logicamente, o seu texto exige, por outro lado, e à semelhança de Donald Trump e Joe Biden, que os europeus ponham «imediatamente fim ao projecto do gás Nord Stream 2» (ler, nesta edição, os artigos de Mathias Reymond e Pierre Rimbert). E recomenda-lhes que apoiem a Ucrânia, «confrontada com a agressão militar do seu vizinho russo». Ora, Kiev reclama sobretudo a sua adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), uma aliança militar de que os ecologistas prometeram retirar a França — uma das «primeiras medidas» se chegassem à governação…
O antigo ministro socialista Benoît Hamon defende, apesar de tudo, que os pontos de discórdia não são assim «tão numerosos entre as formações ecologistas e a esquerda». Quererá isso dizer que, no futuro, a França progressista poderá ter a política chinesa de Tóquio, a política venezuelana de Washington, a política árabe de Telavive e a política russa de Varsóvia?
* Serge Halimi in Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) 7/5/2021
Notas
[1] «Yannick Jadot: “Les régimes autoritaires ne comprennent que le rapport de force”», Le Monde, 15 de Abril de 2021.
[2] Ler Jean-Michel Quatrepoint, «Em nome da lei… americana», Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Janeiro de 2017, e, sobre a Alstom, o relato de Arnaud Montebourg em L’Engagement, Grasset, Paris, 2020.