Há cem anos nasceu o militar e primeiro-ministro que, no breve espaço de um ano, deixou o seu nome ligado à maior parte dos direitos constitucionais que constituem hoje a base da nossa vida democrática.
Celebrou-se a 3 de Maio o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, figura grada de militar, patriota e revolucionário, cujo nome permanecerá imperecivelmente ligado ao período mais empolgante da Revolução de Abril, durante o qual se realizaram profundas transformações económicas e sociais na sociedade portuguesa.
Durante o pouco mais de um ano em que esteve à frente da governação, entre Julho de 1974 e Setembro de 1975, foi o impulsionador das mais importantes medidas tomadas para a liquidação dos suportes do fascismo e do colonialismo, e para o estabelecimento das bases democráticas e progressistas que viriam a ser consagradas na Constituição da República Portuguesa, em 1976.
Foi durante os seus quatro governos que se institucionalizou todo um leque de associações socio-político-culturais que permitiram a livre expressão dos cidadãos, se garantiu a liberdade de imprensa e se realizaram as primeiras eleições plenamente livres e democráticas em Portugal, com uma participação histórica.
Durante os seus governos foi posto um fim à guerra colonial nas três frentes africanas e dados os passos decisivos para o reconhecimento do direito à independência dos povos das colónias. O Portugal livre do fascismo e do colonialismo abriu-se ao mundo e tornou-se uma voz respeitada na comunidade internacional.
Foi ainda durante os seus governos que se pôs fim aos monopólios com que uma oligarquia dominava a grande finança e a grande indústria, se realizou uma reforma agrária na área do latifúndio e se promulgou a Lei do Arrendamento Rural, se promoveu o poder regional e autárquico, se promoveu a habitação social, se deram os primeiros passos para um serviço nacional de saúde, se estabeleceu a gestão democrática nas escolas, se levaram a cabo campanhas de dinamização cultural e se iniciou o combate ao analfabetismo.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, matriz do regime saído do 25 de Abril, aprovada já depois de Vasco Gonçalves ter deixado o cargo de primeiro-ministro, inspirou-se nos avanços políticos e sociais ocorridos durante os seus governos e consagra como direitos, liberdades e garantias muitas dessas conquistas.
A questão do poder, e ao serviço de quem está, determina o rumo da vida do povo e do País. Vasco Gonçalves, pela forma como o exerceu, permanece como exemplo de um governante fiel ao seu povo e à sua Pátria, para as presentes gerações e para as vindouras.
Um amigo do povo no Governo de Portugal
Nas suas preocupações estiveram sempre e primeiro os trabalhadores, os desfavorecidos, os oprimidos, e não os interesses dos poderosos. Significativamente, foi o primeiro chefe de governo a assistir a um congresso de sindicatos, onde agradeceu «o papel dos trabalhadores e da Intersindical nas lutas reivindicativas que desenvolveram no tempo do fascismo» e sublinhou que «foram as classes trabalhadoras, em aliança estreita com os militares» a desenvolver a «verdadeira revolução social» realizada imediatamente após o 25 de Abril.
Com os governos de Vasco Gonçalves foi produzida importante legislação de trabalho, alguma dela pioneira em Portugal. Foram criados o subsídio de desemprego, o subsídio de Natal para pensionistas e o suplemento de grande invalidez; foi melhorada a protecção social dos trabalhadores agrícolas e actualizado o salário mínimo nacional em 21%; foram suspensos os despedimentos sem justa causa e o Governo responsabilizado pela promoção da contratação colectiva; legislou-se o direito de manifestação e concentração e publicou-se a Lei Sindical.
Simples na maneira, verdadeiro no discurso, falava para o povo e este entendia-o. «Companheiro Vasco», foi chamado, e nenhum epíteto expressaria melhor o sentimento dos desapossados e dos militares revolucionários que nele confiaram, que sentiam que por ele não veriam traídos os seus interesses e aspirações a uma vida melhor e mais justa.
Foi amado pelos pobres, pelos fracos, pelos trabalhadores da cidade e do campo, para quem representou a esperança de um futuro melhor. Comer sentados à mesa, iguais em direitos, e não a receber as migalhas lançadas da mesa dos senhores.
Também os intelectuais nele admiraram o discurso límpido, a dimensão ética, humana, a cultura, e nele vislumbraram a vontade de uma sociedade onde os artistas e trabalhadores intelectuais pudessem desenvolver a sua actividade criadora em condições de justiça social.
Profundamente português, patriota, foi odiado pelos poderosos, pelos senhores do capital e seus servidores, por aqueles que vergaram a interesses estrangeiros.
Um militar na Revolução
Há homens que se temperam uma vida inteira para um momento excepcional que pode ou não acontecer, mas que, se esse dia enfim chega, estão à altura das circunstâncias.
Vasco Gonçalves é um deles. Coronel de engenharia em 1973, com uma carreira militar exemplar iniciada em 1946, adere ao movimento dos capitães e torna-se o oficial mais graduado no Movimento das Forças Armadas (MFA), integrando a Comissão de Redacção do Programa do MFA e a sua Comissão Coordenadora.
Dirá, mais tarde, que «se não tivesse participado no 25 de Abril [...] seria um homem derrotado» a sua vida «teria sido uma frustração».
O golpe militar desferido a 25 de Abril com o derrube do governo fascista transforma-se no mesmo dia em revolução ao beneficiar do imenso apoio popular expresso nas ruas, que viria a confirmar-se poucos dias depois nas grandiosas manifestações do 1.º de Maio em Lisboa e por todo o País.
Líder da Comissão Coordenadora do MFA e membro do Conselho de Estado desde a sua formação, a indigitação de Vasco Gonçalves para primeiro-ministro, em Julho de 1974, será uma escolha natural dos seus camaradas, perante os quais era visto como «militar sensato para quem a política, a moral e a ética eram inseparáveis, sem que tal implicasse fraqueza ou ingenuidade».
Sua filha Maria João lembraria, anos depois, o «militar com preparação intelectual, cultura política, económica e social [...] habituado a reflectir, a questionar, a ouvir, a estudar, e acima de tudo, imbuído, sempre, de um rigoroso espírito científico, na análise e avaliação dos problemas e situações, na ponderação das soluções e acções a empreender».
O engenheiro militar era um homem de cultura, leitor de história e de filosofia, estudioso da matemática, amante da literatura e apreciador de música, mas era sobretudo um «apaixonado pelo saber».
Aos 52 anos não era desprovido de experiência política ou revolucionária. Antifascista desde a sua juventude, ao tornar-se militar e integrar as Forças Armadas ao serviço da ditadura estava consciente do papel que estas poderiam desempenhar no seu derrube. Em 1959 participou no fracassado «Golpe da Sé», após a fraude eleitoral que retirara a vitória ao general Humberto Delgado.
Ao mesmo tempo, eram-lhe caras virtudes militares fundamentais, como a honra, o espírito de missão, a lealdade, a camaradagem, que coincidiam com os valores com os quais fora educado.
No seu discurso de tomada de posse não podia ser mais claro: agradeceu aos jovens militares de Abril, proclamou a sua fidelidade absoluta ao Programa do MFA e a intenção de governar «ao serviço do povo português e, muito particularmente, das camadas mais desfavorecidas».
Ao longo dos seus mandatos, o novo primeiro-ministro apoiou-se numa plêiade de revolucionários, militares e civis, para quem os interesses populares e a criação de uma sociedade mais livre e justa eram objectivos partilhados, e governou com o povo e não contra o povo.
Cumpriu o que prometeu na tomada de posse: os governos que chefiou tomaram importantes medidas para a liquidação dos suportes do fascismo e para a democratização da sociedade portuguesa, e tiveram em conta, como nenhum outro na história de Portugal, os interesses e os anseios dos trabalhadores e classes populares, a soberania e a independência nacional.
AbrilAbril - 3 de maio