10.12.20

COISAS DA CORTE DAS AREIAS (11) - Histórias Fragmentadas -A Carreira Velha / Estrada Mourisca

O prometido é devido. Na última crónica ficou a promessa de em seguida falarmos um pouco sobre este antiquíssimo caminho, designado ainda hoje, entre nós, por Carreira Velha.
Não fora o caso de termos lido na Revista Cultural,  editada pela Câmara Municipal de Nisa em 2001, uma narração histórica ali incerta, da autoria do Prof. Carlos Tomás Cebola, sob o título " O Castelo dos Templários" e, provavelmente, não estaríamos agora às voltas com este assunto, posto que ali se descreve a passagem por perto de Nisa, de uma antiga estrada mourisca ligando Cória, em Espanha, à ribatejana cidade de Santarém.
Esta cidade espanhola, "regalo del passado", como lhe chamam os nossos vizinhos, era conhecida na antiguidade como Cauria, de origem céltica, conserva ainda muralhas do Baixo Império, dista 70 Kms para noroeste de Cáceres e fez parte a partir do séc. XV do senhorio dos Duques de Alba.
Poucos haverá que o não saibam, a Carreira Velha é aquele antigo caminho que cruzamos após passarmos ao alto do Retiro, quando seguimos de Nisa para a Senhora da Graça pela Fonte do Frade, e que aqui nos chega pela direita vindo do Racheiro, Couto de Santo André, seguindo em frente na direcção de Palhais. Vem de longe e para igual distância segue este caminho. Aonde adquire a designação de Carreira Velha? E onde a perde? Vá lá saber-se, quando muito conjecturar, percorrendo-o.
Voltando à Estrada Mourisca, é o nosso conterrâneo Carlos Tomás Cebola quem nos diz, socorrendo-se para tal de mapas e itinerários de autores árabes, que cruzava o Tejo a jusante da Foz do Sever, passava por terras de Nisa, termo de Arez, entroncando por ali na Vereda da Sardinheira, seguindo para terras de Santarém. Certo. O mapa que ilustra o trabalho do Inspector Cebola o confirma, só que, passados tantos séculos,, não é possível pegar em estacas, espetá-las por aí no terreno e garantir: era por aqui que seguia!
Sendo o atravessamento do Tejo feito por perto da Foz do Sever, fácil é adivinhar que sê-lo-ia na Lomba da Barca (1), ou, como diriam os nossos vizinhos beirões, na Barca de Perais.
Daqui, infalivelmente, a Estrada Mourisca viria passar onde hoje se ergue a Ermida da Senhora dos Remédios, com o castelo de Montalvão em frente e bem lá no alto do morro para onde seguia. Já o percurso para sul, procurando Nisa, não o podemos garantir, pese embora as muitas voltas dadas, os quilómetros percorridos nas visitas aos sítios, envolvendo gente de Montalvão, Salavessa e Pé da Serra. Porque pensamos que a estrada vinha por Montalvão? Por duas razões, a saber. É Jorge Rosa, em "Montalvão - Ecos duma História Milenar", quem nos diz, a páginas 41, que Montalvão, ou pelo menos o seu castelo, "já era conhecido durante o período árabe", admitindo o autor ter o dito sido construído antes pelos visigodos.
A segunda razão tem a ver com a configuração do terreno, muito acidentado, não havendo a mínima hipótese de tal estrada, vinda da Barca de Montalvão, seguir outro rumo que não o da Ermida antes referida. Agora, como adivinhar o ponto onde entroncava esta estrada Mourisca na Carreira Velha, que certamente na sua passagem a norte de Nisa, eram já uma só e a mesma? Duas hipóteses são plausíveis: uma, descia de Montalvão ao Ribeiro de Favelro pelo Porto de Alpalhão, subia à Cumeada, para logo descer à quebrada da Ribeira de Nisa, que galgava junto ao Caratão, daí seguindo, já com o nome de Carreira Velha (2) até Palhais.
A outra hipótese seria vir de Montalvão pelo caminho anterior até à Cumeada, e seguir com ela pela direita até Pé da Serra e introduzir-se por ali na Estrada Romana, seguindo pela Ponte da Senhora da Graça para apanhar a Carreira Velha no cruzamento já referido, junto ao Cancelão, início da Barroca do Vale Louro.
Chegados ao Alto Palhais, olhamos o horizonte para oeste e seguimos pelo caminho público de Entre Coutos (muito provavelmente a Estrada Mourisca), que confronta para sul com o Couto do Vale Cardoso, que em 1936 viu os seus 91,635 hectares divididos em 109 parcelas.
Seguindo, cerca de mil metros percorridos vai ele curvando à direita e embrenhar-se na densa mata de pinheiros e eucaliptos, só a deixando quando alcança, por perto de um imponente açude, o Ribeiro de Palhais.
Ao caminho vamos chamar-lhe Vereda da Chamorra, nome pelo qual é conhecido, e acompanhá-lo até ao Monte Branco e daqui à estrada e ao velho caminho do Monte Claro à Velada, que cortamos, iniciando a descida para o Ribeiro de Filipe, ainda e sempre pelo mesmo caminho, mas já chamado por aqui Caminho dos Almocreves.
Transposto o ribeiro junto a um renque de passadeiras de pedra, saúda-nos o Monte Claro e novamente as dúvidas nos assaltam: por onde segue e se aproxima do Figueiró? Até há pouco acreditávamos que seria pela Alagoinha; hoje não pensamos assim e admitimos que esta importante via corria procurando a Ponte Medieval de Albarrol, após passar próximo da actual subestação eléctrica da Falagueira e por perto de Albarrol, indo daqui a Vila Flor, e encaminhando-se de seguida para a Charneca, por perto da Ermida de S. João, ao encontro dos terrenos de Gavião, entroncando por perto, no termo de Arez, na Vereda da Sardinheira, confirmando deste modo o que o nosso amigo Insp. Carlos Cebola afirma.
Naturalmente que este trabalho, necessariamente alicerçado nalguma pesquisa, quer no terreno, quer em obras literárias e também junto dos mais idosos, tem acima de tudo, na base, muita curiosidade, que nos conduziram em pensamento a hipóteses com as quais jogamos, especulando, sempre e unicamente com o propósito de motivar, no mínimo, um ou outro dos naturais onde ocorreram os acontecimentos.
E porque a prosa vai longa e o espaço é curto, no jornal, vamos sobrevoando S. Miguel na serra, pular de Montalvão ao Monte Branco (S. Matias) e aí parados, olhando as novas e bonitas vinhas que vão nascendo, recordar que, não por acaso,, por ali, junto à Estrada Mourisca, houve ou há, na memória do povo, o Poço do Alcaide, a Fonte dos Mouros, o Caminho dos Almocreves, e que bem pertinho, como nos diz José Francisco Figueiredo, a página 3 da "Monografia da Notável Vila de Nisa" da dominação árabe, apareceram, em 1946, na Tapada do Severino (...) cerca de uma centena de moedas de prata dentro de uma panela de barro (...) que o numismata dr. Pedro Batalha Reis classificou as moedas de dirhemes, do tempo do emir de Córdova, Abderrahman, nos anos de 821 a 852 da nossa era".
A mesma notícia, esta publicada no extinto jornal "O Século", da época, temo-la nós no nosso arquivo, é acompanhada por fotografia de uma das moedas e titula assim: "Uma panela com moedas árabes de há doze séculos foi encontrada numa herdade alentejana".
Nesta notícia fica-se a saber que a Tapada do Severino era pertença do sr. José de Oliveira Bispo (hoje é do seu neto, sr. Anselmo Bispo) e que também o ilustre catedrático sr. dr. Damião Peres, o qual, examinando uma das moedas, esclareceu que se trata dum diréme, do emirado de Córdova, que foi cunhado no Andaluz no ano de 127 da Hegira (745 de J.C).
É assim, os mapas dos sítios, a toponímia dos lugares, a memória quase perdida das gentes, são como um puzzle. Uma vez unidas as peças, sucedem-se conclusões interessantes. 
Notas
(1) - Barca de Montalvão
(2) - Carreira Velha já é referenciada em documentos de 1412.

* João Francisco Lopes in "Jornal de Nisa" nº 125 - 5/2/2003