A covid-19 tem servido de escudo para se justificarem falhanços e abusos. Mas há uma questão em que ninguém pode arguir a covid-19 para desculpar comportamentos que pensávamos já banidos, desde que o 25 de Abril, quando acabou com a PIDE; refiro-me ao bárbaro assassinato de um homem às mãos de três autoridades do SEF que deixou Portugal envergonhado. E toda a lentidão do processo, no apoio às vítimas e na responsabilização deste crime é o sinal de um governo inflexível e de um Presidente da República conivente.
Foi uma brutal violação dos direitos humanos e só nove meses depois, foi prestada a atenção devida. É um episódio que não é novo, nem é único; a diferença, foi a morte do cidadão ucraniano, Ihor Homeniuk. Assistimos a mais do mesmo, com as desculpas esfarrapadas e as promessas adiadas. Um ministro que falhou não pode estar em funções e quem o protege, defende o falhanço.
Esta pandemia mostra-nos a incapacidade do capitalismo em proteger as pessoas e até o seu modelo. Aliás, é este modelo que destrói o planeta e as pandemias podem multiplicar-se, se não mudarmos os nossos hábitos de vida, principalmente na desenfreada indústria alimentar. O geógrafo, David Harvey mostra-nos como a covid-19, parece uma vingança por “anos de maus tratos grosseiros e abusivos da natureza" [1], assim como de hábitos perigosos. O capitalismo fóssil derrotou o Acordo de Paris e o planeta pode estar irremediavelmente perdido.
Ambientalistas e movimentos progressistas, alertam há muito para a forma errada como os governantes têm conduzido o mundo. Não é o apocalipse, mas vamos assistir a cenários de pós-guerra e vai ser necessário salvar as pessoas, em especial da fome, assim como, equacionar um planeta sustentável. Ao contrário, vamos ter um mundo ainda mais desequilibrado com os menos culpados a pagarem a “fatura” do lucro desenfreado. Nada será igual, mas não sabemos como será; as escolhas vão ter que ser feitas por nós, libertos de todos os populismos oportunistas e jogos de poder. É preciso acabar com a vergonhosa ditadura dos mercados financeiros e é urgente acabar com este mundo plastificado, que já entra assustadoramente no nosso organismo.
O vírus tem o apoio irresponsável dos negacionistas, da falta de consciência das pessoas, que deliberadamente não cumprem e das medidas tardias e incompletas do governo. O melhor exemplo deste país do faz-de-conta, é o que se passa nas Escolas e em especial na Saúde, com os envolvidos entregues ao salve-se quem puder. Nem este cenário de guerra, que causa tantas mortes, demoveu os apoiantes do recente O.E., que não reforça a frente de batalha do SNS e não investe nas trincheiras dos que são feridos no duro combate do desemprego. Só se salva a economia se salvarmos as pessoas e os governantes não percebem isso.
Ninguém está livre de sentir os efeitos da covid-19, de uma forma ou de outra, somos todos atingidos. O pior, é quando existe falta de solidariedade e apontamos os infetados como se tivessem lepra, mas quando nos bate à porta, o caso muda de figura. As pessoas que já perderam familiares, os empregos e os negócios, sabem que estamos em guerra; enquanto outros ainda brincam ao faz-de-conta nesta batalha desigual, mas com um inimigo comum que ataca tudo e todos.
Felizmente, também existem relatos dos importantes exemplos de solidariedade e vamos ter que apelar às consciências de que esses exemplos devem ser universais. Resta-nos isso e a esperança da vacina que finalmente está a avançar. A classe do coronavírus é reconhecida desde 1960, como também explica David Harvey, mas a indústria farmacêutica tem pouco apetite em investir na prevenção. Também não aprendemos nada com as outras variantes do SARS, identificadas desde 2003 e não podemos deixar de aprender com a covid-19.
É preciso investir no que é fundamental, apoiar as pessoas, garantir os máximos cuidados. Mas nesta luta que tem sido feita de altos e baixos, avanços e recuos, ficámos a saber que o vírus teve direito a uma prenda no sapatinho. António Costa anunciou uma trégua para o Natal e depois, com mais infetados e mais mortos, voltamos à luta.
Tenham paciência, façam o essencial, evitem encontros que podem alargar as cadeias de contágio. Sabemos que é difícil os avós não abraçarem os netos, é doloroso, os pais não abraçarem os filhos, mas é importante ultrapassar esta pandemia e gritarmos que vencemos.
Paulo Cardoso in Programa "Desabafos" / Rádio Portalegre - 18/12/2020[1] Texto publicado na revista Jacobin.