7.12.20

COISAS DA CORTE DAS AREIAS (10) - Pontes do Passado – Ligação ao futuro (5)

A ponte da Figueira Doida
Contemple-se esta ponte e de imediato algo sentimos. Estamos perante um estilo de arquitectura diferente de qualquer outra no concelho de Nisa, é bem bonita e não menos estranha, com dois arcos de volta redonda, largos e altos, o que nos surpreende se somente pensarmos em termo de caudal do ribeiro que corre sob ela, ou será que a imponência da ponte tem menos a ver com as cheias e mais com a importância do caminho que serviria?
Ficalho é o nome do ribeiro onde se encontra o dito, nome “adquirido na confluência dos regatos do Mártir e Arrafaneiros” e que tem a foz no Tejo, no “Cachão do Algarve”.
Algarve ou Algar? Na verdade, anda por aí grafado de ambas as formas, mas Fernando Portugal, no Índice Toponímico do Concelho de Nisa, chama-lhe “Cachão do Algar”, o que ao autor parece ser mais correcto, pois “Algar tem que ver com Poço…, originado pela acção das águas”, como é o caso. Acresce que também na obra Tombos da Ordem de Cristo – Comendas a Sul do Tejo, na página 21, ao delimitar-se uma coutada da Ordem, no Tejo, aparece novamente a referência ao Algar e isto num documento de Dezembro de 1505, vão já passados 500 anos.
Ponte da Figueira Doida, como os montalvanenses lhe chamam, povoação onde alguns naturais nos afirmam ser ela romana, enquanto em Salavessa, a algumas pessoas, nos dizem ser “dos tempos dos mouros”.
E se não for assim, mas de uma época intermédia? Visigótica, por exemplo. Não andaram eles por aqui, durante três séculos após os romanos e antes do árabes? Claro que sim. Não têm alguns nisenses para ceder ao concelho de Nisa, quando houver Museu, muitas “peças” de entre as quais algumas visigóticas? O autor da Monografia da Notável Vila de Nisa, prof. José Francisco Figueiredo, também lá nos diz terem sido encontradas moedas em ouro, visigóticas, em S. Gens (1929), na Fonte da Clã e na Coutadinha (1948), e temos ainda as muitas sepulturas (cistas) por aí construídas nos campos do Cadete e Dona Mariana, e outras já destruídas na Bajanca e na Coutadinha, peças estas – admitem os entendidos – serem obra daquele povo.
Curioso, no mínimo, é referir o que Jorge Rosa nos lega na obra de que é autor "Montalvão – Ecos duma história milenar", quando, na página 41, escreve que Montalvão, ou pelo menos o seu castelo, “já era conhecido durante o período árabe”, admitindo o autor ter o dito sido construído antes pelos visigodos.
Na separata da Revista Cultural de Marvão, nº 3, de 1993, sob o título O Castelo de Montalvão, da autoria do Dr. José Dinis Murta, em nota inserida na pág. 157, ali escreve: “Em investigações efectuadas (…) constatámos que o castelo de Montalvão já é referido na Crónica do Mouro Rasis (séc. X)”.
Algumas vezes foi esta ponte por nós visitada, só ou acompanhados por gente que sabe do “ofício”, aos quais ouvimos curiosas opiniões, que resumiremos deste modo. Sendo antiga, “foge um pouco ao protótipo das pontes romanas”, mais se aproximando do estilo árabe, ainda assim houve quem, pelo estilo e comparação com coisa já vista, admita ser ela visigótica.
Em que ficamos? É esta ponte muito antiga ou, pelo contrário, será moderna? Lá iremos. Para já, parece-nos oportuno transcrever o que um documento precioso nos diz sobre o tema e em referência a Montalvão, e que tem por título Manuscritos do Arquivo Histórico de Vincennes – Paris – referentes a Portugal (1803-1806), de António Pedro Vicente.
Este documento, com 200 anos, descreve as comunicações (caminhos) entre Montalvão e as vilas e lugares da vizinhança, descrição pormenorizada que hoje ainda se confirma. Experimente, perguntar quer em Montalvão quer na Salavessa, sobre a ponte da Figueira Doida e obterá como resposta que a dita fica no antigo caminho que ligava as duas povoações. Certo, mas perguntamos nós: desde que data e até quando? É que no citado documento, escrito há dois séculos, lê-se:
“ Para Celavessa – Caminhos de Carretas. Há hum de Montalvão que sai pela rua de S. João e toma logo à direita por entre as tapadas da Villa, atravessa depois os regatos do Martyr e Arrafaneiros que ambos formão o de Ficalho, e sobe depois aos altos da Charneca de Val-de-Melhorado, onde se reúne com outra estrada de carretas que vem de Niza, e percorrendo a planície desta charneca desce depois para chegar a Celavessa.”
Porque interessa ao tema, também aqui se escreve o que o documento refere sobre “Caminhos de Besta” entre estas duas povoações e que diz assim: “Há vários atalhos que de Montalvão saem para Celavessa, os quais porem se reúnem ao caminho de carretas antes desta povoação. (…) Depois do confluente dos ribeiros de Martyr e Arrafaneiros há sobre o ribeiro de Ficalho huma pequena ponte de pedra perto da estrada de carretas, e a qual ponte serve só para gente de pé e cavalgaduras; mas actualmente se acha arruinada e impraticável.”
Acontece e nós podemos testemunhá-lo, que agora não está assim tão arruinada e até está praticável.
Reparem neste pormenor. Hoje, quem vai de Montalvão para Salavessa fá-lo saindo para Norte, voltado ao Tejo, descendo pela Rua da Barca, quando há 200 anos o percurso era em sentido inverso, para Sul, lados de Nisa, descendo pela rua de S. João, já com este nome na altura. Pela leitura do citado documento, depreende-se que há 200 anos o único caminho de carretas para Salavessa não utilizava a ponte da “Figueira Doida”, situada a uns bons 500 metros abaixo da outra mais pequena, “de pedra”, já referida.
Daí a pergunta anterior: desde que data, o novo caminho para Salavessa, agora também já fora de uso, utilizou aquela ponte? E até quando, pois já não se utiliza?
Não pretendemos fazer, menos ainda alterar, muito menos inventar História, quanto muito deixar pistas a quem um dia se disponha a fazê-la, a de todo o concelho, pistas que resultam tão só da curiosidade, que nos leva a “andar por aí”, espreitando o nosso território.
Terá aquela elegante ponte algo a ver com a estrada mourisca de Cória (Espanha) para Santarém? Estrada já mencionada em escritos pelo nosso amigo Insp. Carlos Tomás Cebola, que cita e nos mostra um mapa do século X, do geógrafo árabe, Al- Istakhri pelo qual se conclui ser a travessia do Tejo na actual freguesia de Montalvão, na Lomba da Barca, frente a Perais.
Fantasiar, à vezes, ajuda, em referência a Montalvão, consulte-se a “Carta Militar do Instituto Geográfico do Exército, folha 315, edição de 1999”, junte-lhe a prosa citada do documento de Vincennes (Paris) e arrisque tirar conclusões, ou, no mínimo, sonhar. Que a ponte não era, há 200 anos (1803-1806) utilizada como passagem para Salavessa atesta-o documento de Paris, e que, posteriormente, a esta data foi por aí já caminho, comprova-o a memória recente do povo dos dois lugares.
Que o caminho, atravessada a ponte, seguia em frente, é por demais evidente e sabido, mas é também evidente que logo ali bem junto à ponte, há vestígios de um caminho, saindo para a esquerda que termina emparedado, após percorrer escassos 15 metros. Por onde corria? Que caminho era este? A estrada mourisca? Vamos passeá-la? Venha daí, mas antes vamos até admitir que apesar do estilo, pode a ponte não ser romana nem visigótica, nem árabe ou medieval, e possa até ser moderna (200 anos). Contudo e estranhamente, na memória dos povos da área ela é “muito antiga, do tempo dos mouros”.
Observe-se o mapa do geógrafo árabe Al-Istakhri e acredite-se que, ao menos a estrada mourisca de Cória – Santarém, corria por ali, vinda do Tejo, da Lomba da barca (Montalvão-Perais).
A estrada viria, infalivelmente, ao lugar onde se ergue a ermida da Senhora dos Remédios, daqui subindo ao castelo de Montalvão ou ladeando-o (estão lá os antigos caminhos), dirigia-se para a Figueira Doida, onde sobre o ribeiro, estaria ou não a “misteriosa” ponte. E depois? Bem, na sequência de algumas visitas ao local, observando, não é difícil conjecturar que a via fazia “caras” ao actual Monte da Feia, subindo a colina frente à fonte com o mesmo nome, “da Feia”, sendo embora bonito.
Já no alto, no já referido caminho de carretas da charneca, seguindo-o no sentido nascente, e após correr com ele cerca de 1000 metros, deixava-o para se dirigir ao Pae Lázaro, onde no alto e para norte, paredes-meias, temos o Pêro Galego”, território de deuses pré romanos e romanos, divindades veneradas pelos nossos antepassados concelhios. Consulte-se, a propósito, José d´Encarnação em “Nisa ao tempo dos Romanos”, onde este autor e sobre o tema, realça ainda a “pesquisa efectuada pelo Dr. José Dinis Murta, que apresentou ao 1º Encontro de História Regional e Local de Portalegre”, em Setembro de 1987 (1).
Unindo os sítios do Pai Lázaro e Pêro Galego, podem ver-se hoje, ainda, as ruínas da igreja de Santa Maria Madalena (faz sentido), construída com grandes blocos de granito, em terras de xisto, cinzelados, tão do agrado dos romanos, espalhados por ali nos portais das herdades, nos umbrais das portas dos montes, nas paredes dos currais e das tapadas.
Terminada a visita, vamos continuar. Um safurdão um pouco arruinado, contempla-nos, como que nos acusando… a nós que não temos culpa, é bom de perceber, da “moléstia” que o atacou. Novamente no Pai Lázaro, iniciámos a descida para o Porto Pinheiro, no ribeiro de Fivelro, voltando a subir até à Cumeada, não sem antes olharmos a cratera ali deixada, quando caiu, explodindo, um avião a jacto da Força Aérea.
Já na Cumeada, frente à Lameira Larga, assaltaram-nos as dúvidas, sobre por onde seguiria, a partir daqui, a estrada mourisca “até entroncar na estrada romana da Ammaia”, para, seguindo juntas, rodearem a Senhora da Graça e irem ao encontro, logo ali, adiante, da Carreira Velha, com a qual segue para poente, tendo em mira a cidade de Santarém.
Eis, aqui, um tema para colóquio. Professores de História no concelho, temo-los, com saber e sentimento. Por que não conceder-lhes a palavra?

João Francisco Lopes in "Jornal de Nisa" -  28/2/2007

(1) –Consulte-se a citada obra.