7.6.20

OPINIÃO: As cercas raciais

Não espanta ninguém que André Ventura se proponha revogar legislação e de caminho estruturas que visam combater a discriminação e o ódio racial.
Ou que, a pretexto dos protestos nos Estados Unidos, anuncie prisão para quem ofender polícias ou magistrados e o fim da "bandalheira" no Twitter se algum dia (espera-se que a flauta de Hamelin nunca chegue a tanto) vencer as eleições.
O que espanta é a leveza com que um autarca socialista (socialista?) anuncia uma cerca sanitária a um bairro social de famílias ciganas, obrigando os delegados de saúde local e regional a corrigir a informação sobre o número de pessoas infetadas e a clarificar que tal medida restritiva não estava prevista nem faria sentido. Nada que impedisse o autarca de insistir numa espécie de cordão "para eles ficarem isolados dentro das suas casas", porque têm "muitas crianças e andam constantemente na rua".
Poderia ser um caso isolado, mas é um erro ignorar comportamentos que existem de forma bastante mais disseminada do que seria desejável. A Comissão Nacional de Proteção de Dados já instaurou processos a autarquias que divulgaram dados pessoais de infetados, incluindo sobre a etnia. E, quando um surto atingiu o bairro da Jamaica, assistimos em direto nas televisões ao aparato da operação policial para encerrar cafés no local.
Nem sempre o racismo e a discriminação se manifestam de forma ostensiva, com a brutalidade de um joelho que pressiona um pescoço até o sufocar.
Quando mais subtis, mais facilmente os gestos se vão perpetuando, porque levamos tempo a mudar e a desnudar comportamentos que, de tão interiorizados ao longo de séculos de história, se tornaram parte do contexto e do ambiente em que nos movemos. A pretexto de preocupações sanitárias, esta pandemia fez emergir atitudes controladoras, intolerantes e intoleráveis. Unidos às lutas que ressoam lá fora, não minimizemos as que nos convocam cá dentro.
Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 6/6/2020