«Juízes recusam julgamentos em salas sem ar fresco e higienização», dizia a manchete do jornal Público de 3 de Junho. Por esses dias, as preocupações das autoridades sanitárias do país estavam concentradas no aumento das infecções pelo coronavírus na Região de Lisboa e Vale do Tejo (RLVT). Distribuindo-se por vários concelhos desta região de grande densidade e mobilidade populacional, o número diário de novos casos positivos de COVID-19 foi revelando quais as classes sociais e os grupos profissionais por trás do mais recente aumento dos contágios. São os mais pobres, cujos rendimentos nunca permitem ficar em casa sem trabalhar, nem no estado de emergência. São aqueles cujas casas não têm condições de habitabilidade e cujos meios de deslocação para o trabalho não permitem cumprir regras de higiene e distanciamento físico. São aqueles cujos empregos, precários, temporários ou informais, já antes da pandemia colocavam problemas de saúde e segurança, concentravam a maior parte dos acidentes de trabalho e continuam a carecer da intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Os juízes fazem bem em exigir condições de saúde e segurança para voltarem ao trabalho. Mas não é por acaso que as manchetes não dizem que operários da construção civil, empregadas da limpeza ou trabalhadores das cadeias de abastecimento, transporte e distribuição recusam trabalhar sem condições adequadas à protecção da sua saúde. Muito invisíveis no espaço mediático, estes trabalhadores continuaram a desempenhar funções essenciais fossem quais fossem as condições, porque qualquer perda de rendimento era insuportável. Saíram e voltaram a casa com medo de infectar e de ser infectado. Foram os primeiros a saber que os transportes iam cheios demais, que não tinham equipamentos de protecção adequados, mas não puderam dar-se ao luxo de parar. Fizeram chegar denúncias a sindicatos, estruturas partidárias, associativas. Com o passar do tempo foi patente que a pandemia na Área Metropolitana de Lisboa (AML) divergia do resto do país e começou a olhar-se a sério para o que os números traduziam.
As desigualdades entre países reproduzem-se na geografia das classes sociais dentro de cada Estado. É por isso, aliás, que o sistema capitalista favorece as crises, com as suas transferências de rendimentos das periferias (geográficas e sociais) para os centros. Achatar a curva das desigualdades exige, pois, quebrar as cadeias de transmissão da subalternização, dentro e fora do país. Sem isso não há maneira de gerir a pandemia: o risco assimetricamente distribuído compromete todo o ecossistema.
É altura de fazer escolhas. Hoje quase parecem piadas de mau gosto as ideias neoliberais marteladas durante décadas sobre «a superioridade do funcionamento dos privados», «a modernidade da flexibilidade no trabalho», «o corte das gorduras do Estado» ou «as virtudes da financeirização». Mas a crise já está a reforçar as desigualdades (perde mais rendimento e mais dificilmente recuperará quem já menos tinha – ver, nesta edição, o artigo de Lina Coelho) e estão a mobilizar-se os poderes que pretendem intensificar a estatização do capitalismo. Só reunindo uma ampla frente política e social será possível, portanto, reinstalar lógicas de organização da comunidade assentes na provisão e na produção públicas, apostando em lógicas «de proximidade e não mercantis», sabendo que «há poderes que não se entregam a quem não usa as mesmas regras ou os mesmos objectivos», como afirma José Reis em proposta feita nesta edição.
O reforço do SNS é só uma parte da resposta pública à pandemia e às desigualdades que ela aumenta. A outra parte é composta pela recuperação de políticas públicas robustas na área da habitação, dos transportes e do trabalho, favorecendo a articulação entre administração central e local. As políticas de habitação, depois de anos a privilegiar a especulação e os fundos imobiliários, num quadro de liberalização do mercado de arrendamento, precisam de regressar à função constitucional de garantir o direito à habitação. A população não pode continuar a ser atirada pelos preços especulativos para círculos cada vez mais distantes dos locais de trabalho e para alojamentos cada vez mais precários (saneamento básico, espaço, acesso a Internet, etc.). Mas não se trata apenas do parque público habitacional: há que proteger a população que vive em estabelecimentos residenciais para idosos garantindo a oferta de espaços públicos residenciais seguros e acessíveis a todos.
Políticas de combate à precariedade habitacional e residencial, portanto, mas também à precariedade dos transportes públicos colectivos. As medidas ao incentivo do uso da bicicleta são positivas, mas não substituem a aposta no transporte público. Alguns passos importantes foram já dados. Foi há pouco tempo e já quase não nos lembramos de que a pandemia na RLVT seria ainda pior, em particular para os mais frágeis, se não tivesse havido uma «revolução nos transportes» que reduziu os tarifários metropolitanos e introduziu uma visão integrada da mobilidade entre concelhos, aumentando a capacidade de monitorização pela Autoridade de Transportes dos serviços prestados pelos operadores [1]. Foi, aliás, no âmbito das verbas previstas no Orçamento do Estado para o Programa de Apoio à Redução Tarifária (PART) que foram antecipadas as verbas que subsidiaram os operadores privados de transportes, de modo a que durante o estado de emergência se mantivesse uma prestação de serviços da ordem dos 40% (cf. Decreto-Lei n.º 14-C, de 7 de Abril de 2020). Mas entretanto o país desconfinou, a grande maioria das empresas de transporte privadas continua com trabalhadores em lay-off e é cada vez mais urgente ajustar a oferta. As operadoras precisam de retomar a 100% horários, itinerários e frequências, para poderem aplicar todas as novas regras de segurança, distância e higienização. Não é possível ter, como tem sido denunciado pelo presidente da Câmara Municipal de Loures, Bernardino Soares, operadores a funcionar a 55% da capacidade e cidadãos em risco dentro dos transportes. A escassez de transportes põe toda a comunidade em risco; se ela resultar de um défice de exploração rigorosamente documentado e incomportável para estas empresas, o Estado terá de equacionar, pelo menos, novos apoios.
Combater a precariedade habitacional e residencial, nos transportes e também no trabalho. Os malefícios da precariedade laboral são bem conhecidos. Os vínculos precários, na multiplicidade das suas formas contratuais, criam vidas de incerteza, baixos salários, carreiras contributivas com reformas de miséria e apoios sociais que faltam quando deles mais se precisa. A precariedade estende-se a todo o tecido social, e até económico, mesmo na ausência de emergências sanitárias. Com a pandemia, tudo piora. Desde logo, nas profissões que pararam, como a cultura, mas também nos trabalhadores mais expostos ao risco sanitário, da carrinha da empresa onde se amontoam até ao estaleiro da construção onde os procedimentos pouco ou nada mudaram.
A fractura social expõe, de facto, as vítimas mais atingidas pela pandemia. Os mais velhos, os mais doentes, os mais pobres. A exploração destes últimos por um sistema gerador de desigualdades não é de agora. Mas a compreensão de que destruir os mecanismos que consolidam a subalternidade é a única forma de protegermos toda a comunidade pode estar ao nosso alcance.
Sandra Monteiro in www. lemonde diplomatique - edição portuguesa - Junho 2020Notas
[1] Ver Sérgio Manso Pinheiro, «Transportes: uma “revolução” no bom caminho», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2018.