26.6.20

OPINIÃO: Ideias antigas com roupagens novas eclodem em tempos de pandemia

As novas formas de comunicação, exponenciadas pela velocidade da luz a que circula a informação na Internet, não vieram para aliviar a carga de trabalho, mas sim para a intensificar, atentando, também, contra os direitos dos trabalhadores.
O efeito de metamorfose característico do capitalismo, na sua voracidade de gerar cada vez mais lucro, cria novas necessidades e leva todos e todas no seu encalço, desde o cidadão anónimo que compra ansiosamente o último gadget, ao político profissional que defende as virtuosidades da sociedade digital.
A capacidade do capitalismo se metamorfosear acelerou-se bastante nas últimas décadas, sobretudo depois dos choques petrolíferos que ditaram o fim dos “Trinta Gloriosos” anos de crescimento económico, contínuo e único, que caracterizaram as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
O modelo de desenvolvimento assentava essencialmente na capacidade de consumo da generalidade das famílias. Ter rendimentos que permitissem comprar o que se necessita, tudo o que era supérfluo, em grandes quantidades, tinha por base a ideia do pleno emprego e uma publicidade crescente, que se encarregava de difundir o mais possível, e por todo o lado, o designado american way of life. As preocupações com o ambiente e o planeta eram praticamente inexistentes.
Foi a melhor época para os trabalhadores do mundo ocidental, onde os Estados promoviam o pleno emprego e os empregadores concediam mais direitos, graças à ação sindical forte e como forma de responder às tentativas de derivas mais socialistas, defensoras do fim da propriedade privada, que sopravam do Leste. Foi a época de crescimento das políticas públicas que permitiam o acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação, à proteção na maternidade, ao lazer, à cultura, entre outros. Quando a Guerra Fria começava a chegar ao fim, já se falava em direitos humanos de terceira geração que incluíam o direito ao ambiente, à solidariedade, à autodeterminação e à paz.
Os choques petrolíferos, por um lado, e a queda do Bloco Leste, por outro, despoletaram um outro desenvolvimento do sistema capitalista, que aposta as fichas todas nas novas tecnologias e nas empresas de serviços através da Internet. Diluída a ameaça de leste, procede-se ao ataque aos direitos do trabalho, entendidos apenas e cruamente como um custo de produção.
Num primeiro momento este novo cenário foi propagandeado como o advento de uma nova forma de sociedade, a do lazer, na qual trabalhadores seriam substituídos por automatismos. Durou pouco essa narrativa, até porque a vertigem neoliberal lançou mãos de estratégias eficazes de diluição dos movimentos sindicais e de ataque aos direitos dos trabalhadores. Na Europa, um dos primeiros exemplos foi o modo como Margaret Thatcher lidou com a greve dos mineiros.
De facto, as últimas três décadas foram de intenso desenvolvimento tecnológico, mas não no sentido de libertar o trabalhador e de lhe proporcionar mais tempo de lazer e para a família, mas para o substituir por automatismos que não reivindicam, não procriam, não precisam de descanso, nem fazem greve.
Do mesmo modo, as novas formas de comunicação, exponenciadas pela velocidade da luz a que circula a informação na Internet, não vieram para aliviar a carga de trabalho, mas sim para a intensificar, atentando, também, contra os direitos dos trabalhadores. Mais do que isso, proporcionam formas de controlo remoto do trabalho, que, por ser em frente a um ecrã, se enquadra na lógica do trabalho repetitivo numa linha de montagem e, pior, sem direito a desconectar. Que o digam os milhões de trabalhadores de call centre espalhados pelo mundo, quase sempre precários, reduzidos na sua capacidade mental a debitar informação ou a ajudar um cliente, a partir de um guia de procedimentos, do qual não se podem desviar nem uma sílaba. Todas as interações são gravadas.
Os avisos que soaram eram dissonantes com a ideia facilmente vendida de trabalhar a partir de casa ou que as tecnologias de informação e comunicação implicavam processos de trabalho muito diferentes dos anteriores. A força de trabalho migrou para novos ambientes, terceirizou-se, mas com os constrangimentos de sempre: salários baixos, em perda de direitos, com condições de trabalho claustrofóbicas, pausas controladas ao segundo e muito condicionadas. Quanto às virtuosidades do teletrabalho elas estão à vista de todos e a pandemia demonstrou-as: são muito poucas, não se ajustam a todas as profissões e implicam a diluição da fronteira entre o espaço pessoal, íntimo e familiar e o espaço de trabalho, exterior, em grupo.
Por último, e não menos importante, a ideia de desmaterialização dos processos mostrou a sua perversidade em plena pandemia: abonos de família foram cortados liminarmente pelo sistema informático no qual não foi introduzido o comprovativo X. Os exemplos são às dezenas. Mas ainda há mais implicações. A bondade das plataformas informáticas mais não são do que formas de nos levar a consumir mais e mais plataformas informáticas e bem pagas. Veja-se os malabarismos que tiveram de fazer os professores, já sabendo eles que de todas as vezes que muda o software de gestão de alunos, perde-se informação e tem de ser introduzida manualmente. Ou então como decorreu o adulterado ensino a distância. A incompatibilidade entre as plataformas verifica-se em quase todas as áreas onde se procuram automatizar processos com perdas, muitas vezes irreparáveis de informação e de registos. Além disso, considera-se que para estes processos são necessários menos trabalhadores, logo, dispensam-se. O pleno emprego foi remetido para os manuais de História quase como uma ideia impossível.
Lembrando que o trabalho é um direito humano, a saúde, incluindo a mental, também o é. A espantosa descoberta é que o trabalho com direitos, com condições, com tempo livre e para a família, significa mais saúde, incluindo a mental, logo, menos gastos no SNS e pasme-se, menos absentismo e maior capacidade produtiva. A pandemia causada pela Covid 19, demonstrou, afinal, que ideias antigas apresentadas como novas, capazes de suscitar “grandes e maravilhosas mudanças”, repetem os mesmos problemas de sempre, para os quais alguns já chamaram a atenção, e obrigam a uma reflexão atenta e crítica sobre as suas supostas virtuosidades.
Alexandra Vieira in plataformamedia.com - 24/6/2020