7.6.20

A CAMINHO DE BISSAU - Memórias da guerra colonial (I)

(Há 48 anos, no dia 7 de Junho de 1972, parti e cheguei à Guiné. O texto é o relato dessa viagem)
Aconteceu há um rol de anos. Estávamos em 1972, num daqueles dias de Junho de calor sufocante.
Lisboa acordara buliciosa e alegre, e a fresca neblina matinal não deixava antever a temperatura que iríamos suportar.
O dia começara cedo no quartel, na Calçada da Ajuda. Tínhamos - depois de não sei quantos adiamentos - mais uma partida marcada.
Na parada do quartel a primeira chamada: 172? Pronto! 175? Pronto! e assim continuamente.
Eram do Alentejo, como eu, do Minho, de Trás-os-Montes. Havia-os também de Lisboa, da outra banda, acabados de chegar, olhos ainda meio estremunhados. Chegara a hora dos papéis. Desta vez - pensámos - é mesmo a valer...
Foi um destroçar rápido, o arrumar da trouxa em "passo de corrida" e num ápice estávamos no camião verde-azeitona dos "Adidos", prontos a encetar a caminhada. Alto da Ajuda, Belém, Rotunda, tantas e tantas artérias alfacinhas que atravessámos a caminho do aeroporto de Figo Maduro.
Ali, mais papéis e formalidades e, quase sem darmos por isso estávamos no interior do Boeing militar. Aproximava-se o momento decisivo: a descolagem.
Era para todos a primeira viagem de avião!
Trocámos olhares, chalaças, anedotas, ditos próprios da tropa. Tentávamos em vão esconder o nosso nervosismo.
O comandante deu-nos as boas-vindas em nome da tripulação. Acto contínuo as turbinas começaram a trabalhar e o avião deslizava na pista, primeiro lentamente, depois em tal velocidade que chegámos a temer que fôssemos precipitar-nos sobre aquele aglomerado de casas: Sacavém.
Mas não! O avião ergueu-se, qual águia gigante sobre o casario lisboeta. Do silêncio inicial passou-se a um ambiente quase de festa.
- Olha o Estádio da Luz! - dizia um. E além a Torre de Belém e a ponte - apontava outro. Espectáculo inolvidável este que desfrutámos sobre Lisboa e que conseguiu abafar a tristeza da partida.
Foram-se as últimas casas de Lisboa, de Almada, da Margem Sul... Agora apenas vemos mar, muito mar. E continuamos a subir.
Há uma calma e um silêncio que agride... Passou a fase da experiência, a excitação do primeiro voo. Até parece que andar de avião foi coisa que sempre fizemos...
Uns recostam-se nos assentos e fecham os olhos, sonham, talvez. Outros lêem ou fingem que lêem. Todos, sem excepção, recordam. Naquele silêncio, naquela paz inebriante, naqueles olhares, há mil viagens. Há mil idas e voltas a Trás-os-Montes, às Beiras, às planícies alentejanas... Há mil e uma lembranças que afluem ao pensamento.
Rostos, sorrisos, lágrimas, pequenos e grandes episódios que constituem o universo pessoal de cada um. Tantas viagens numa viagem...
Eu escrevo. Aproveito aquela calma relaxante e escarrapancho no papel, em quatro ou cinco folhas, as emoções vividas. Escrevo a minha primeira carta da Guiné.
Vamos por cimas das nuvens. Que espectáculo ímpar! Parece que voamos sobre um oceano de neve, de flocos de lã pura, eternamente branca.
Aqui e ali pequenas clareiras deixam-nos espreitar o mar, o azul Atlântico.
Sentimos o avião a baixar de altitude. O calor vai aumentando e simultâneamente começa a aparecer uma porção de terra. Deduzimos que estamos sobre as Canárias. Lá está a tropical Las Palmas, rodeada de palmeiras. Novamente as nuvens, o retorno à calma e à reflexão. Depois, a rotina...
O calor continua a flagelar-nos e a farda pesa-nos cada vez mais. Já nem as camisas sentimos bem. Somos avisados de que vamos fazer escala em Cabo Verde.
Ali está o aeroporto do Sal, talvez a ilha mais pobre do arquipélago.
Distinguimos perfeitamente o casario, a terra castanha-avermelhada, em brasa e suplicante. De vegetação nem sombra!
O avião faz-se à pista. Ali, naquele descampado e indiferente ao barulho dos motores, uma cabra procura chegar à roupa no estendal.
Pisámos por breves minutos a terra de Cabral! Que mundo estranho se apresentava à nossa volta. Que calor tórrido e que silêncio...O tempo parecia ter parado.
Voltámos ao avião para a última etapa da viagem. Outra vez a mesma sensação da partida em Lisboa. Depois o mar e a quase monotonia...
Não para mim. Um livrinho que distribuíram no avião, vai entreter-me até ao aeroporto de Bissalanca. Naquele momento estava longe de imaginar a influência que a sua leitura iria exercer sobre mim. Desfolhava, sem o saber, o meu primeiro livro de política!
Fazia a apologia do regime e do colonialismo. Tentava justificar a opressão sobre os povos africanos, com a defesa da fé, da civilização ocidental e de conceitos multi-raciais. Falava do PAIGC, do engenheiro-agrónomo Amílcar Cabral, o renegado Amílcar Cabral como no folheto se aludia ao grande dirigente político africano, que os esbirros da PIDE haviam de assassinar no princípio de 73.
A propaganda oficial iria ter efeitos contrários aos pretendidos. A realidade encontrada deitava por terra todas as teses propagandísticas do marcelismo. 
Eis-nos na Guiné, o nosso destino. O mesmo ritual da descida. Em Cabo Verde, a terra nua, esventrada, triste... Aqui, à nossa frente, mil rios de água castanha, barrenta, sem nascente nem foz, rodeados de mil ilhéus plenos de verdura. Mais além, tabancas e tabancas, dispostas em círculo, sob a protecção de árvores gigantescas, numa miragem que tão cedo não se apagará da minha memória.
Guiné-Bissau, hoje, país independente, termo da nossa viagem e início de muitas outras, algumas das quais ainda não terminaram.
Mário Mendes
(Texto escrito há mais de 40 anos e publicado em jornais como "Fonte Nova", "Diário do Alentejo" e "O Pregão".)