Encontrei o Xico Xiaton no café, onde faz deliciosos
petiscos, com uma pantufa no pé direito. Sentado, de perna estendida, um
trejeito de dor nos lábios, com os braços em arco abraçando o volumoso abdómen,
o Xico sofria.
O meu amigo Xico sofre de gota.
Segundo a Drª Vera, do Instituto Português de Reumatologia,
dentro das doenças articulares metabólicas, a GOTA, classicamente, é a mais
antiga e digna representante. Doença dos reis e das classes abastadas, nada
mais é do que um erro do metabolismo das proteínas que faz com que o ácido
úrico aumente sobremaneira na circulação sanguínea, chegando a níveis tais que acaba
por se depositar nos tecidos, preferencialmente intrarticulares. O resultado
são crises realmente agudas de artrite, mais comummente do primeiro dedo do pé
ou do joelho dos homens na 3ª ou 4ª décadas de vida.
Pois é verdade, o meu amigo Xico sofre de GOTA. Doença de
reis e de gente abastada... Quem diria, Xico!
Quarenta anos atrás, o Xico, o Jule, o Zé de Nisa, o Tonho,
o Alforedo, o Joã, e outros de pé descalço e calção aberto para mais
rapidamente se aliviarem, corriam desalmadamente pelas ruas e azinhagas de
Nisa.
Sem doenças de reis, brincavam em grupos de vizinhos com
brinquedos de pobres. Sendo que, um dos divertimentos mais populares era a
guerra das pedras. A Fonte da Cruz contra a Devesa, a Fonte da pipa contra a
Vila. “Quem não é da minha rua, merda para a sua”, era um dos gritos de guerra.
Mais rapidamente do que hoje, com ténis Nike ou Adidas, era
vê-los: os pés descalços, com solas mais rijas que o aço, as canelas cheias de
crostas de feridas que nunca cicatrizavam, os dedos dos pés com unhas que de
tantas topadelas dificilmente cresciam, a correr por entre poças de água, pelos
pastos, ou em grande algazarra a descer ao escorregão pelas pedras junto à
Praça de Touros, ou na Azinhaga do Depósito da Água.
Mas, era à pedrada que a adrenalina inundava a juventude
naquele tempo.
Na Devesa, era difícil porque os locais se defendiam atrás
das inúmeras carroças, que estacionavam no largo; na Fonte da Pipa eram as
paredes de pedra que os protegiam.
De vez em quando, o azar batia à porta, mais propriamente à
cabeça de algum mais descuidado.
Cabeça aberta, o sangue a pingar, um choro envergonhado, e
vai de correr para casa para o regaço da mãe, fazer o curativo antes que o pai
chegasse e ralhasse.
Ora, entre os artistas da pedrada havia um, que não esquece,
nem ao Xico nem a nenhum dos que com ele conviveram: era o Xico Carneiro.
Canhoto, era temível pela pontaria aos gatos, aos pássaros e
às cabeças dos adversários. E se no aspecto físico era idêntico aos outros nas
mazelas que exibia, de uma coisa se podia orgulhar: nunca lhe partiram a
cabeça.
Porque era esquivo? Por inépcia dos adversários? Nada disso.
Tão simplesmente porque o nosso homem, sempre que tocava a reunir, corria a
casa pegava num penico e zás: com a asa para trás, enterrava o penico na cabeça,
qual guerreiro medieval.
A sua aparição infundia respeito, e não raros eram os que,
mal vislumbravam a asa do penico, logo debandavam em precavida retirada
estratégica.
De entre tantos companheiros desse tempo, não me lembro de
quem lhe tivesse partido o penico, quanto mais a cabeça.
Já agora Xico, o tratamento da GOTA é feito com sintomáticos
com o os anti-inflamatórios, além do allopurinol que irá controlar o
metabolismo proteico, sendo que a opinião de um reumatologista é
imprescindível.
Mas, quando a malta se juntava quem é que queria saber
disto?
Um destes dias vou fazer-te uma visita, se me prometeres
preparar um maranho, um pão do ti Virgílio e uma magnífica garrafinha de vinho
Chelse, do tal...
E, não te esqueças de comprar uns cartuchos; é que as rolas
estão aí, estão a chegar. Entretanto, toma lá um abraço amigo, do
Zé de Nisa - Julho de 1998