13.8.16

DO ALTO DO TALEFE (12): À pedrada com um penico

Encontrei o Xico Xiaton no café, onde faz deliciosos petiscos, com uma pantufa no pé direito. Sentado, de perna estendida, um trejeito de dor nos lábios, com os braços em arco abraçando o volumoso abdómen, o Xico sofria.
O meu amigo Xico sofre de gota.
Segundo a Drª Vera, do Instituto Português de Reumatologia, dentro das doenças articulares metabólicas, a GOTA, classicamente, é a mais antiga e digna representante. Doença dos reis e das classes abastadas, nada mais é do que um erro do metabolismo das proteínas que faz com que o ácido úrico aumente sobremaneira na circulação sanguínea, chegando a níveis tais que acaba por se depositar nos tecidos, preferencialmente intrarticulares. O resultado são crises realmente agudas de artrite, mais comummente do primeiro dedo do pé ou do joelho dos homens na 3ª ou 4ª décadas de vida.
Pois é verdade, o meu amigo Xico sofre de GOTA. Doença de reis e de gente abastada... Quem diria, Xico!
Quarenta anos atrás, o Xico, o Jule, o Zé de Nisa, o Tonho, o Alforedo, o Joã, e outros de pé descalço e calção aberto para mais rapidamente se aliviarem, corriam desalmadamente pelas ruas e azinhagas de Nisa.
Sem doenças de reis, brincavam em grupos de vizinhos com brinquedos de pobres. Sendo que, um dos divertimentos mais populares era a guerra das pedras. A Fonte da Cruz contra a Devesa, a Fonte da pipa contra a Vila. “Quem não é da minha rua, merda para a sua”, era um dos gritos de guerra.
Mais rapidamente do que hoje, com ténis Nike ou Adidas, era vê-los: os pés descalços, com solas mais rijas que o aço, as canelas cheias de crostas de feridas que nunca cicatrizavam, os dedos dos pés com unhas que de tantas topadelas dificilmente cresciam, a correr por entre poças de água, pelos pastos, ou em grande algazarra a descer ao escorregão pelas pedras junto à Praça de Touros, ou na Azinhaga do Depósito da Água.
Mas, era à pedrada que a adrenalina inundava a juventude naquele tempo.
Na Devesa, era difícil porque os locais se defendiam atrás das inúmeras carroças, que estacionavam no largo; na Fonte da Pipa eram as paredes de pedra que os protegiam.
De vez em quando, o azar batia à porta, mais propriamente à cabeça de algum mais descuidado.
Cabeça aberta, o sangue a pingar, um choro envergonhado, e vai de correr para casa para o regaço da mãe, fazer o curativo antes que o pai chegasse e ralhasse.
Ora, entre os artistas da pedrada havia um, que não esquece, nem ao Xico nem a nenhum dos que com ele conviveram: era o Xico Carneiro.
Canhoto, era temível pela pontaria aos gatos, aos pássaros e às cabeças dos adversários. E se no aspecto físico era idêntico aos outros nas mazelas que exibia, de uma coisa se podia orgulhar: nunca lhe partiram a cabeça.
Porque era esquivo? Por inépcia dos adversários? Nada disso. Tão simplesmente porque o nosso homem, sempre que tocava a reunir, corria a casa pegava num penico e zás: com a asa para trás, enterrava o penico na cabeça, qual guerreiro medieval.
A sua aparição infundia respeito, e não raros eram os que, mal vislumbravam a asa do penico, logo debandavam em precavida retirada estratégica.
De entre tantos companheiros desse tempo, não me lembro de quem lhe tivesse partido o penico, quanto mais a cabeça.
Já agora Xico, o tratamento da GOTA é feito com sintomáticos com o os anti-inflamatórios, além do allopurinol que irá controlar o metabolismo proteico, sendo que a opinião de um reumatologista é imprescindível.
Mas, quando a malta se juntava quem é que queria saber disto?
Um destes dias vou fazer-te uma visita, se me prometeres preparar um maranho, um pão do ti Virgílio e uma magnífica garrafinha de vinho Chelse, do tal...
E, não te esqueças de comprar uns cartuchos; é que as rolas estão aí, estão a chegar. Entretanto, toma lá um abraço amigo, do
Zé de Nisa - Julho de 1998