Era quase meia-noite e
o meu pai deslumbrava-se com o ardor dessa gente nova, de sangue na guelra, que
tinha sentado à sua volta, num entusiasmo patriótico de ímpetos ancestrais.
Quando o ponteiro do relógio da sala contígua se aproximou das 0 horas, alguém
se lembrou:
- E se fôssemos saudar
o novo ano de 1962 com uns tiros para o ar, ali no quintal?
- Nem é tarde nem é
cedo... – gritaram dois.
- É preciso cuidado,
vejam lá oque arranjam... – ponderou o meu pai. O tenente da Guarda anda por
aí...! Mas dêem fogo! Ali está a FN de cinco tiros.
Levantei-me, num ápice,
e agarrei a minha velha arma com redobrado carinho de caçador. Retirei da
cartucheira as cinco “bombas” de fulminantes cobertos e enchi a câmara e o
tambor. E quando as doze badaladas começavam a ouvir-se no relógio da torre da
vila, o trabuco despejou pausadamente as nossas salvas para o ar calmo dessa
noite de memória eterna. A essa hora, sem sabermos de nada, absolutamente nada,
o pronunciamento de Beja começava e o Monstro Colonial aproximava-se já de nós,
a passos largos, vomitando fogo e transpirando sangue.
Ah!, o Monstro que
viria, de rosto pintado de vermelho e negro, quando rufaram tambors ao longe e
as botas de tacões largos bateram nos
lagedos das praças dormentes de sol, onde lagartos dormiam à sombra milenária e
cómoda de hinos e heróis acumulados. A Pátria é “una e indivisível”! O “esforço
estóico” está aí, outra vez! E quem vai, quem vai? Vão os mancebos! Quem há-de
ir? ( E há que ir?!... Aos milhares?) Os mancebos! Os velhos mandarão e os
mancebos vão!
Os “velhos” só já têm
tempo para mandar e aos mancebos sobra-lhes tempo para tudo, ainda que seja
para morrer já. Resta a aura, a glória! E, além disso, fica-se sempre novo,
mesmo depois da morte, quando se é jovem. Que o digam certas velhas
fotografias...
- Eu já morri uma vez,
Pedro! – dizia-me o Alberto Diniz
- Tu sabes. A Mena
morreu naquele hediondo desastre de viação, ela e os pais, e eu também morri
nessa hora. Foi a minha primeira morte. Insuportável. Irreparável. Bem um final
de vida e, mais do que isso, de sonho. “Pelo sonho é que vamos...” como dizia o
Sebastião da Gama, o nosso poeta da pureza, mas eu não fui... fiquei, para
sempre, ali, presa naquela curva maldita onde o “Mercedes” novo era um destroço
de aço e sangue.
- Mas nego-me, nego-me
a morrer em Angola ou a 10 mil quilómetros daqui... Eu não vou! Tu vais, mas eu
não vou! Quero conhecer gente, quero conhecer os homens, conhecer mulheres, eu
ainda não conheço nada e já me querem tirar o Mundo? Já morri uma vez e ainda
não vivi. Agora quero viver e não morrer mais..., ao menos não morrer,
definitivamente.
Não morrer “definitivamente”,
dizia o Alberto Diniz em Abril de 1962, um outro Abril longínquo, em Nisa, a
meio da longa recta de Palhais, inundada de luar e cheiros de boninas, àquela
hora da madrugada em que nem sequer os galos cantaram, fazendo coro nessa
despedida rápida, com o carro do Passador ao fundo, silencioso, escondido numa
das gares laterais à estrada, quase à vista da famigerada curva do Padreca.
Tinha chovido há pouco
e a faixa do asfalto brilhava como largo rastro metálico, de prateado astral.
Era como que o caminho para uma outra galáxia, uma via sem fim, não sinuosa,
que se perdia no escuro dos longes que rumavam para lá da mancha negro-cinza,
fantástica e colossal da serra de S. Miguel.
Essa nossa serra, tão
familiar, mas enigmática e com alma. Tinha-o “desvendado” o Alberto num dia de
calor, em Junho, em que observávamos a montanha redonda e principal, o cabeço,
do alto da colina da Virgem da Graça.
Silêncio e calor. A
leve brisa castanho-esverdeado, postado naquela derradeira quietude estranha
que toca em misticismo bíblico quem a contempla em recolhimento.
- Estás a ver? –
sussurrava o Alberto. Este silêncio e aquela montanha! Que ternura! Descobri!
Eu “descobri”, Pedro!. Sabes porque é que o Dionísio Baco aqui parou e ficou,
esse tal lendário e primeiro conquistador das Espanhas, de que fala Motta e
Moura? Também condutor de homens a caminho de um paraíso imaginário, ele sentiu
aqui o seu Sinal, sim, como Moisés... Esta foi, com toda a certeza, a sua
montanha adorada. E Nísio, muito mais tarde Nisa, o rasto humano que ficou
dessa maravilhosa e profunda contemplação.
O motor do velho
Chevrolet de praça começou a ronronar. Passavam nuvens que que taparam a lua cheia, por momentos.
Íamos só os três,
caminhávamos em silêncio pesado, eu, o Alberto e a Mãe. De repente, ele parou e
disse:
- Não, minha Mãe, não
caminhe mais. A caminhada, daqui para a frente, é só minha, tem que ser só
minha.
Parámos, atónitos e
vazios, e ele seguiu em frente, sozinho. A Mãe esboçou um grito rouco, de
joelhos no chão:
- Meu querido filho!
Que Nosso Senhor te acompanhe!
Ele parou ainda uma
vez, além, a meio da faixa de prateado astral e olhou bem para nós. Depois
voltou-se e correu, como um louco, até desaparecer por completo na lomba do
Barracão.
Carlos Franco
Figueiredo
(Dedico aos meus
queridos Companheiros de Juventude: Manuel Francisco Semedo, João Pereira
Peleja, Emílio Figueiredo, Fernando da Mata Veiga, João Zacarias Curado, Manuel
Filipe, Emílio Ferreira, Victor Bonito, Jorge Cruz Miguel e António Neves
Isabel).