(...) Meus avós moravam no prédio
número oito da Rua Dr. Mário Monteiro e, ali perto, a uns escassos vinte ou
trinta metros, fica o Largo dos Postigos – assim chamado devido a umas portas
que lá havia, no tempo das antigas muralhas.
Como todas as crianças, aquele
largo fascinava-me pela sua amplitude; ali podia brincar, correr e saltar,
livre e despreocupadamente.
Neste recanto da Vila, havia duas
garagens, pertença do senhor Aníbal Vieira e cujo motorista, o António Tomás,
abria diariamente; uma oficina de “carpinteiro de obra grossa”, de que era
proprietário o Ti Quintino e um palheiro cujo dono era o Ti Camilo.
Era este um homem de idade;
quando o conheci, já ele tinha bem mais de setenta anos.
Coabitava com um irmão: - O Ti
Tonho.
Vivia da agricultura, tendo por
isso muitos animais domésticos: - borregos, cabras e ovelhas, um cão a quem
chamava “Manjerico”, uma cadela que respondia pelonome de “Ligeira”, um macho
castanho e um burro preto a quem baptizara de “Jerico”.
Vendo tantos animais – o delírio dos pimpolhos
daquela idade – lá passava todo o tempo que podia e ao velhote me fui
afeiçoando.
Quem não gostava nada desta “camaradagem”
era os meus pais e avós, pois no regresso a casa, vinha sempre sujo, cheio de
palhas e com o pequeno corpo servindo de manjar às muitas pulgas que por lá
impunemente imperavam, descansadas por saberem que o Ti Camilo as não ia
molestar com o DDT ou qualquer outro produto químico inventado pelo homem, para
extermínio de tão incómodo quanto nojento animal.
Até a vizinhança me queria cortar
aquelas horas de prazer, alegando que não era próprio para um menino como eu, “filho
e neto de professores”, andar metido com um homem tão sujo como era o Ti Camilo
e, também, porque ia por lá aprendendo a dizer alguns palavrões, “nomes feios”,
como eles diziam.
Coitados, pensavam eles que a
diferença de nascimento é barreira intransponível para o bom relacionamento
entre os homens...
Estavam, como é evidente,
redondamente enganados e, se alguma coisa sei no campo da etnografia, a esse
homem simples devo parte dos conhecimentos, bem como a paixão que nutro pela
romântica e saudável vida campesina; quanto aos “nomes feios” que me valeram
algumas sovas e castigos sempre os viria a aprender, sabe Deus se noutro local
e com mais graves implicações.
Só o primo Fernando e a prima
Maria dos Remédios me “faziam capa”, chagando ao ponto de, antes de ir para
casa, passar pela residência deles, que era ali perto, no Largo do Município,
para me limparem o fato, lavarem a cara e porem álcool nas babas de pulga;
podia andar por lá à vontade, vir sujo, que eles resolviam o assunto e não
teria problemas ao reencontrar a família mais chegada.
Após o falecimento de meu avô,
veio minha avó residir para um prédio pegado com o deles e, em todas as férias
eu aqui passava uns dias completamente à vontade.
Posto isto, quem era, afinal, o
Ti Camilo?
João do Rosário Camilo Sena, de
seu nome completo, nascera em Nisa, ali crescera, vivera e envelhecera.
Não sabia ler nem escrever, que
nos tempos da sua meninice, os pais queriam era braços para o trabalho e não
mandavam os filhos “aprender as letras”.
Era magro, de pequena estatura, a
cabeça semi despovoada de cãs, sem vestígios de dentes a ornamentarem-lhe os
maxilares que já há muito tinham mirrado.
Só fazia a barba de oito em oito
dias.
Não tinha cama, dormia na palha,
em cima de umas sacas e, aparava as unhas dos quatro membros com a mesma
navalha que cortava o pão e o “conduto”.
Levantava-se com o sol.
Espreguiçava-se e dava uns
bocejos.
Como dormia vestido e calçado,
não tinha demoras a fazer a “toilette”.
Abria a porta do palheiro,
atravessava o Largos dos Postigos e ia ao “chão” – pedaço de terreno cercado de
paredes, onde tinha uma cabana para o gado pernoitar.
Aí ordenhava uma cabra, para
dentro da “ferrada”, quantas vezes cheia de pó, palha ou formigas, regressando
depois ao palheiro.
Sem ferver o leite,
adicionava-lhe um pouco de café e de açúcar, que guardava dentro de uma velha e
desconjuntada “arca” e deliciava-se a saboreá-lo, juntamente com um bocado de pão
com queijo, que ele próprio fabricava.
Em seguida, punha o cabresto ao
Jerico e, no dorso do mesmo animal, colocava umas sacas que faziam as vezes de
albarda; soltava as cabras, pedia a um vizinho ou transeunte que lhe”desse o pé”
para montar o pobre jumento e lá ia para as “tapadas” e os “bacelos” guardar a
sua cabrada.
Se era Verão, e porque tinha
muito medo do sol, levava um grande guarda-chuva aberto, qual João Semana de
trazer por casa.
Almoçava no campo, o pão com o
queijo e com morcela que levava dentro do “sarrão” e só voltava a casa ao sol
posto.
Nessa altura, era o encontro dos
dois irmãos.
O Ti Camilo que, montado no burro
voltava com as cabras e, o Ti Tonho, a pé, como nos tempos em que fora soldado
da Guarda Nacional Republicana, voltava com o rebanho de ovelhas.
Quando, no firmamento, apareciam
as primeiras estrelas, a anunciar aos homens que o dia cessara, lá eles se
encontravam tentando “derrotar” uma grande “bacia” de barro, cheia de sopas de
batata ou de feijão frade, acompanhada, à laia de sobremesa, por uma enorme “bóia
de toucinho” para cada um.
Comiam ambos da mesma malga, cada
um de seu lado da mesma.
E como tinham bom apetite!!!
Era um gosto vê-los saborear
aqueles manjares que a nós, homens quase deformados pelo excesso de civilização,
por certo causariam abundantes náuseas...
Muitas vezes montei o seu Jerico,
muitos tombos dele caí e muito ouvi ralhar por me arvorar no fiel companheiro
de D. Quixote de La Mancha.
Todavia, mereceu a pena; comecei
a interessar-me por aquela vida simples que aqui deixo mal descrita. Aprendi a
amar a natureza em toda a sua plenitude, e o que foi mais importante, aprendi a
conviver com as pessoas simples e despretensiosas, que são, afinal, quase
sempre as mais puras e sinceras.
Só uma vez aquele homem, que no
inverno vestia safões feitos de pele por ele curtidas, calçava botas grossas e
cardadas, feitas pelo Ti Passão punha pelas costas um pelico castanho e na
cabeça uma carapuça preta, me conseguiu causar certa repugnância.
Como sempre, foi ordenhar a cabra
vermelha que dava pelo nome de “Cardosa”, preparou o café da maneira que atrás
descrevi, provou-o com uma colher que previamente limpara às calças muito
surradas, deitou-o numa tijela de barro já muito desbeiçada e, por gentileza
que em infeliz hora lhe ocorreu, obrigou-me a bebê-lo.
Com sacrifício aceitei e a custo
engoli.
Porém, pouco depois, tive que
sair do palheiro e ir vomitar à azinhaga mais próxima.
É que o “menino João”, filho e
neto de professores, como dizia a vizinhança, naquele dia não conseguiu ter domínio
sobre o estômago esquisito e habituado a outros acepipes, servidos em melhores
condições.
Mas, é este um dos episódios que
mais me apraz recordar, cada vez que falo do Ti Camilo.
Homem honesto, senhor de alguns
bens de fortuna, jamais se adaptou ao progresso e às regras de higiene ditadas
pelo mundo em que vivia.
Talvez cansado da vida já longa,
talvez desiludido, acabou seus dias no mês de Agosto de 1969, dependurado de
uma “madre” do palheiro onde sempre vivera, sonhara e se veio a suicidar.
Paz à sua Alma, Ti Camilo!