Quando uma carta é assinada por pessoas como Noam Chomsky, Margareth Atwood e Salman Rushdie, e mais centena e meia de escritores, artistas e intelectuais com reconhecimento público, há que lhe dar atenção.
Começa por ser interessante procurar a cor política dos signatários: o filósofo e linguista Noam Chomsky é guru e consciência crítica da esquerda americana; o politólogo Francis Fukuyama, embora a tese do “Fim da História” e da irreversibilidade da democracia que defendeu em 1989 após a queda do muro se tenha revelado falsa, é uma figura do pensamento neoconservador; Anne Applebaum é uma historiadora que se coloca ao centro para analisar com independência e acutilância o mundo contemporâneo.
Nos tempos que correm também não é mera curiosidade avaliar a representatividade das diferentes cores de pele. Está o trompetista e compositor Wynton Marsalis e está o coreógrafo Bill T. Jones, ambos negros, tal como uma vintena de outros subscritores amplamente considerados.
No total, a centena e meia de signatários (inicialmente 153) da carta aberta que começou por ser publicada na edição online da revista Harper’s é plural, sendo que todos defendem a sociedade liberal. Percebe-se que quem tomou a iniciativa de recolher subscritores para a carta procurou essa representação de uma certa heterogeneidade, unida para um alerta que desta vez tem como alvo principal setores da sociedade que se representam como progressistas. É um texto escrito com pinças para garantir o máximo denominador comum aos subscritores: a necessidade de defesa da tolerância, num tempo em que avança mais intolerância. Fica em fundo a inquietação por o discurso de ódio instalado por Trump estar a gerar atitudes intolerantes no campo oposto, o progressista.
Esta carta tem o título “A Letter on Justice and Open Debate”, que pode ser traduzido como “Carta sobre a Justiça e o Debate Livre”. O que a suscita é um tema cuja discussão disparou nos Estados Unidos: “cancel culture”. O modo mais adequado para expressar o que está em questão será “politicamente correto”.
Os subscritores estão inquietos com novos excessos de politicamente correto e as nefastas consequências de daí resultar encolhimento do debate aberto, e o crescendo de posições intolerantes e até sectarismo traduzido em pressão para purga de pessoas que pensam em modo que não está conforme com a linha considerada correta pelo movimento dominante.
O enquadramento no tempo é necessário: esta carta aparece um mês e meio depois de o bárbaro assassinato de George Floyd, visto como cruel metáfora dos tempos atuais na América, ter feito levantar nas ruas e nas redes, impetuoso, o movimento Black Lives Matter que depressa disparou da denúncia da violência de agentes brancos sobre negros para profusa exigência de direitos e com as manifestações a escalarem em alguns casos, também elas, para a violência no discurso e na ação. A justa reclamação de oxigénio social por segmentos injustiçados da sociedade tomou formas injustas e intolerantes.
Há vozes moderadas que por o serem – por não aderirem em modo ativo à causa do movimento – são hostilizadas, denegridas, no espaço pessoal privado e também ostracizadas no profissional.
É assim que aparece esta carta aberta de denúncia da “atmosfera sufocante” que está instalada.
A questão colocada é essencial e parte de um princípio fundamental: a tolerância é um bom valor que devemos defender com intransigência. E desencadeia uma outra questão: devemos ser tolerantes com os intolerantes?
Entra aqui a aventura intelectual da dúvida. E há que ponderar outro valor primordial, o da liberdade de expressão.
O quadro ideal de convivência coloca as opiniões em confronto com respeito mútuo: uma opinião é combatida com outra argumentação. Sem medos, sem que as ideias tenham de ficar atrofiadas ou censuradas.
O que esta carta aberta denuncia é o crescendo dessa atrofia ou mesmo censura à expressão de pensamento que não seja coincidente. É assumida a crítica total ao modelo Trump, ao qual reconhecem ser preciso resistir. Mas sem que isso conduza, como resposta, à reação com intolerância e censura social por parte da área progressista, dita de esquerda.
A carta alerta para a instalação de intolerâncias recíprocas, via aberta para a multiplicação do discurso de ódio e o risco de prática de violência.
Como lidar com o discurso de ódio, se deixado à solta, com campo livre? Este envenenamento tem crescido muito nos tempos recentes, não só nas Américas, também na Europa e Portugal não está imune, com a violência verbal a instalar-se no espaço público, seja nas redes sociais, nos programas radiofónicos e televisivos que propagam a opinião envenenada de quem está em zanga e até já tem entrada no parlamento.
O que de facto temos constatado é o avanço do discurso que usa a liberdade de expressão para, muitas vezes, distorcer a realidade ou atacar a dignidade de outros.
Significa que devemos limitar essa liberdade de expressão? Nunca, por mais hostil que seja. Devemos combatê-la com o argumento da razão.
A centena e meia de subscritores desta carta aberta aponta o problema que é real, mas omite a consideração das circunstâncias que o geram. Escapa ao reconhecimento de razões para a revolta que leva a essa prática de ostracismo. Sobretudo a humilhação e o desprezo que sentem continuadamente, e sobretudo nesta época de Trump, os que estão no limbo da sociedade.
Quando salta a tampa da panela de pressão, o rebentamento costuma ter violência. Foi assim no levantamento das universidades de Paris e dos EUA em 1968, como no protesto dos indignados no ano 2012 contra a austeridade em Espanha. O período revolucionário português, em 1974/75, a par da generosidade, teve excessos. Acompanhei, indignado, a detenção, a meio de uma noite de 74, logo a seguir ao 28 de setembro, de Artur Agostinho. O motivo para a detenção em modo humilhante foi o de ter colaborado com a rádio e a televisão do regime de Salazar e Caetano – apesar de dar voz a tanta gente da oposição.
A democracia tem recursos para conter os excessos. Um meio principal é o debate. Em vez de fechar o microfone a quem protesta, optar por ouvir o que quem protesta tem para dizer e ampliar plataformas de discussão.
Aconteceu há semanas a pichagem da estátua que pretende representar o Padre António Vieira. A condenação do ato não chega. Abrir caminho para resolver o conflito passa por criar palco para a discussão pública, aberta, com todas as partes.
Nem pensar em tapar a boca a quem quer que seja, mas tratar de promover o confronto dos argumentos e das ideias.
Sem prejuízo de lembrar a quem se diz de esquerda que a tolerância é um dos valores marcantes da esquerda. Pode ser o início da discussão sobre a carta aberta dos 153.
Francisco Sena Santos - 24.sapo.pt - 17/7/2020