Se o Entrudo é o intróito da Quaresma, o intróito do Carnaval em Nisa fixou-se, desde tempos imemoriais, em 20 de Janeiro, dia em que se festeja o glorioso Mártir Santo S. Sebastião.
Talvez porque no glacial desconforto que se evola dos rigores hibernais a festa do Mártir é como que um parêntesis de alegria ou um prenúncio das graças primaveris, tão desejadas e ainda tão distantes.
Certo é que, a partir desse dia, a mocidade nisense saturada de hipocondria, espaneja-se, liberta de cuidados e sem preocupações pelo dia de amanhã.
Recolhe os repiques anunciadores da festividade do Mártir Santo com o dealbar apetecido das folias carnavalescas.
Nos tempos em que os arraiais se faziam no largo onde se encontra a capelinha do heróico soldado de Cristo, suplicado pela intransigência de Diocleciano, a festa assumia proporções esplendorosas, com avultados réditos, sobretudo nos anos de epidemias ou outras calamidades.
O horror da varíola obrigava as mães a generosa oferta, em dinheiro ou ramos (fogaças), todas rivalizando em propiciar as boas graças do taumaturgo ou agradecer-lhe o seu patrocínio com os enxudiosos galináceos, médios borregos, grandes travessas de arroz doce, perfumados pudins e outras apetitosas guloseimas, não faltando nunca as amplas bandejas com as melhores peças do fumeiro ou o melhor vinho da adega.
Vulgar era também pesarem-se nesse dia os pimpolhos indemnes da bexigada, para ofertar ao santo. Igual peso de trigo, por garridas moças conduzido em reluzentes bacias de cobre.
À meia tarde, quando a filarmónica da terra se dirigia para os ramos, era interessantíssimo ver desfilar, pelas ruas convergentes ao largo da festa, dezenas e dezenas de bébés, com suas melhores galas, com outros tantos ex-votos que as mães, vestidas com a esbelteza do antigo trajo regional, levavam nos braços até junto do andor do Mártir Santo, em sinal de gratidão por lhes ter mantido, são e escorreito, o mimoso e lindo fruto das suas entranhas.
Dentro em pouco, todo o recinto, em que a vibração metálica da fanfarra e o estralejar dos foguetes sobressalam na sussurrante e jubilosa vozearia da massa popular mal permitindo ouvir os lanços que sucessivamente iam valorizando as ofertas leiloadas, dentro em pouco, o acolhedor largo do Mártir era um policrómio ramalhete em que, sobre a tonalidade variegada de lindíssimos xailes, se destacavam, risonhos e gracílimos, os botões aveludados das róseas faces dos bambinos.
Era uma viva e encantadora corbeille de graça e inocência a rebrilhar na meiguice dos olhos, a fremir nas mãozinhas que se agitavam irrequietas e a ecoar por toda a parte em incipentes articulações de riso ou em rasgadas notas de rabujenta compleição.
Junto à capela rodopiavam incessantemente inúmeros pares, ora no ritmo marcial dum passo dobrado ou na cadência da langorosa valsa ou vaporosa polca, ou gargantear de de moça afamada nas modas da época.
Junto à capela rodopiavam incessantemente inúmeros pares, ora no ritmo marcial dum passo dobrado ou na cadência da langorosa valsa ou vaporosa polca, ou gargantear de de moça afamada nas modas da época.
E então era certo que a primeira ária a sair dos lábios da primadona era invariavelmente a tradicional:
Aldeia de Vendas Novas
De Vendas Novas aldeia
É uma praça fechada
Onde o meu amor passeia
Onde o meu amor passeia
Onde a flor-da-murta assiste;
Diz-me amor como passaste
Os dias que me não viste
Era o Carnaval que, naquela voz argentina, dava ingresso no burgo. Daí por diante, até terça-feira de Entrudo, não havia baile ou soirée que não se iniciasse por aquela ouverture...
Não há nisense algum, de mais de quarenta anos que, ao ter esta singela evocação, não recorde com saudade, se estiver longe da terra-mãe, os bailes carnavalescos da sua mocidade, noites de ruidosa folia em que a célebre Aldeia de Vendas Novas era o persistente e característico refrain que, volta e meia, animava a dança, dinamizando os próprios velhos e fazendo até azougar as mulheres do maragoto...
Hoje ainda assim é. Esta persistência ou, melhor esta resistência da velha cantiga no domínio das canções contemporâneas do jazz é muito do meu agrado, pelo inveterado culto que me merece tudo o que é tradicional.
Oxalá que, com a Aldeia de Vendas Novas se mantivesse a indumentária que outrora impunha as minhas patrícias ao incondicional apreço de todas as pessoas de bom gosto.
Mas não! As lindas saias e roupinhas de Nisa são hoje raridades. E, com franqueza, uma rapariga de Nisa, com uma inestética blusa e uma exígua e pretensiosa saia, a cantar a Aldeia de Vendas Novas, é, para não dizer outra cousa, um lamentável e detestável anacronismo...
Que ao menos, nas noites de Carnaval, as donzelas da Corte das Areias procurassem reconstituir os bailes de outros tempos usando os trajos tradicionais: a rubra saia de linda faixa, o característico lenço do pescoço e, sobre ele a reluzir, a áurea riqueza dos seus cordões, grilhões e gargantilhas...
Isto sim que era lindo! E único em todo o país!...
E era assim que nós, os velhos, os que ainda recordamos, com enternecida saudade, as noites de arraial em que se queimavam no pequeno largo do Mártir, as grandes peças de efeito, concebidas e executadas por afamados pirotécnicos João Leitão e Filhos e Braz Rufino, e assistíamos, extasiados, à ascensão dos lindíssimos balões que a escuridão das noites invernosas tornava ainda mais deslumbrantes; era assim, em plena revivescência do que Nisa tinha de melhor na beleza do trajar e na riqueza e originalidade folclóricas, que seria de maior encanto ouvir nos bailes de Carnaval, as lindas nisenses a cantarem, como suas mães e avós, a tradicional Aldeia de Vendas Novas...
J. Figueiredo - "Correio de Nisa" - 26/1/1946