22.7.20

OPINIÃO: Um Parlamento dócil

Agora que passamos da crise sanitária para a crise social gigantesca, o bloco central quer ter um parlamento dócil que não dê eco aos protestos de quem é sempre preterido.
O ano parlamentar termina sob a égide de um acordo de regime entre PS e PSD. É a expressão parlamentar do acordo mais vasto que se vai consolidando entre os dois partidos do meio. E a procissão ainda vai no adro.
PS e PSD entenderam-se para moldar o parlamento às suas conveniências. Ou melhor, às conveniências de um PS com ambição de não ser incomodado no Governo e aos maus fígados de Rui Rio com a democracia parlamentar. Rio, que acha que ser deputado é um desperdício de tempo, diz que os Governos o que têm é que trabalhar e não andar a gastar energias em debates que não servem para nada senão para entreter (a sinceridade de Rio é tocante: ele vê o parlamento a partir do desempenho do PSD e, por isso, acha mesmo que os debates com o Governo no parlamento são só mise-en-scène). E o PS responde o quê a esta insinuação de que um Governo quando presta contas, não trabalha? Pois responde que sim senhor, que o melhor mesmo é diminuir o número de debates com o Primeiro Ministro e diferenciar, nas comissões, uma primeira divisão (PS e PSD, pois claro) e a segunda, a terceira e a quarta, nos tempos de intervenção em debates políticos com o Governo.
É, pois, por um misto de conveniência e convicção que o bloco central quer diminuir o parlamento enquanto órgão de fiscalização política do Governo, quer reduzir o mais possível o espaço para o debate político nele efetuado e quer que a Assembleia da República seja sobretudo um conjunto de comissões técnicas de trabalho legislativo.
Esta substituição do parlamentarismo político pelo parlamentarismo dos técnicos das leis, com a correspondente concentração no executivo da política enquanto escolha de rumos, é a resposta do bloco central à centralidade política que o parlamento teve na fase de vigência dos acordos entre o PS e os partidos à sua esquerda. O bloco central percebeu o risco que é para si um parlamento que discute política e, por isso, em que ganha corpo o confronto de caminhos e fica patente que seguir um e não outro é escolha e não imperativo técnico-jurídico.
Agora que passamos da crise sanitária para a crise social gigantesca, o bloco central quer ter um parlamento dócil que não dê eco aos protestos de quem é sempre preterido. Contra esta perspetiva, a luta pelo espaço do debate político e por um parlamento forte na fiscalização do Governo vai ser essencial para a esquerda nos tempos que estão a começar.
José Manuel Pureza -“As Beiras” -18/7/2020