O João Semedo era meticuloso e determinado, quase obstinado.
Escrevia em vários cadernos de apontamentos, acho que quase sempre com as mesmas
canetas. Um para cada tema, um para o agora e outro para o depois, um para
factos outro para ideias. Era assim que o via preparar-se para as comissões de
inquérito que o tornaram tão conhecido. "O Diabo está nos detalhes",
dizia, e por isso fazia aqueles esquemas enormes, com as datas, os nomes, as
ligações. Por isso me lembro dele a trabalhar pela noite dentro, quando mais
ninguém o fazia, e já toda a gente tinha saído.
Tinha um jeito próprio de fazer política, tranquilo, afável,
mas nem por isso menos certeiro. Fazia-o porque era o seu jeito, mas também
porque sabia que as coisas mais duras devem ser ditas com calma. E a verdade é
que quase ninguém, mesmo em campos políticos distintos, resistia à sua
gentileza atrevida.
O João Semedo construía pontes com talento, unia gente
diferente em torno das coisas mais importantes, como bem vimos nos encontros da
Aula Magna. Fazia-o como ninguém, porque podia. Porque não tinha paciência para
sectarismos, e porque era precedido pela sua reputação de competência e honestidade.
Esteve 9 anos na Assembleia da República e, do testamento
vital à Carta dos Direitos dos Utentes do SNS, não haverá muitos deputados com
um legado tão concreto e consistente. Deixou o Parlamento em 2015 e foi já
doente que organizou duas das mais importantes disputas do nosso presente: o
direito a morrer com dignidade e uma nova Lei de Bases do SNS.
Mostrou-nos que a política não se resume aos cargos, ao
protagonismo nem ao poder vazio. É uma forma de viver, um compromisso, e é
vontade de construir liberdade e justiça, até ao fim. Obrigada. O privilégio
foi todo nosso, João Semedo.
Mariana Mortágua in “Jornal de Notícias” – 24/7/2018