Estive a fazer um esforço de memória, mas não me lembro do
dia em que te conheci, João. Não deveria ser difícil, porque a nossa amizade
não tem décadas, tem antes os anos da minha vida parlamentar.
Não me lembro do dia em que te conheci.
Não me lembro desse dia porque – agora percebo – é comum a
adesão a alguém, quando imediata e intensa, jogar com a temporalidade e,
subitamente, parece que aquela pessoa sempre ali este. Tu, no caso, meu querido
João.
Aderi a ti por causa da tua autenticidade e da firmeza do
teu carácter. Antes mesmo de ser tua amiga, essas qualidades choviam do teu
olhar direto, forte, irónico, atento, sorridente, cúmplice, terno, e, de
repente, nosso.
Aderi a ti por causa das tuas causas.
A igualdade era para ti condição de liberdade e, por isso,
estiveste sempre ao lado de quem menos pode, porque menos tem.
Aderi a ti porque um dia deste por mim. E ajudaste-me numa
fase lixada da minha vida. Olhaste fundo, pegaste-me no braço e fomos dar uma
volta. Com o teu saber médico e com a tua generosidade, deste cabo do que
estava a dar cabo de mim. Fiquei boa. E menos sozinha. E fizemos piadas para
sempre sobre o meu caso clínico.
Percebi que eras assim. Um coração aberto, empático, um
diálogo para quem o quisesse.
Mas atenção, gente que esteja a ler isto: o João tomava
partido. O João tomou partido toda a sua vida, escolheu os seus combates, nunca
temeu adversários e, nos últimos tempos da sua vida, entregou-se até ao fim às
causas do SNS e da morte assistida.
Foi na luta pela despenalização da morte assistida que
ficamos mais amigos. O João lutou pela aprovação da dignidade de todos na
liberdade de cada um. E acreditou que após um debate tão alargado e sério na
sociedade, a seriedade se mantivesse até ao fim e que a tolerância vencesse.
Enganou-se.
Por isso mesmo, quando foi lançado o livro por si organizado
com o título “Morrer com Dignidade”, o João, não podendo estar presente por
causa da doença, enviou um texto magnífico, no qual diz isto: “Nos últimos dois
anos, não me recordo de qualquer outro tema tão discutido como a morte
assistida. Foi um debate intenso, muito participado e que mobilizou e envolveu
a opinião pública portuguesa. Infelizmente, nem tudo correu bem. O radicalismo
extremista em que apostaram alguns adversários da despenalização poluiu o
debate com uma série de mentiras, insinuações e falsificações sobre o que se
verifica nos países em que a morte assistida é permitida e sobre o que propõem
os projetos de lei que vão a votos, no próximo dia 29, no nosso Parlamento. O
Movimento considerou, e bem, ser indispensável responder a essa campanha e repor
a verdade com isenção, rigor e objetividade informativa. Não sendo obra
perfeita, julgo que esse propósito foi plenamente conseguido com esta edição,
constituindo um importantíssimo contributo para a aprovação, entre nós, da
despenalização da morte assistida. Ajudar a morrer serena e tranquilamente,
acabando com o sofrimento inútil, é uma atitude muito nobre, de elevado valor
moral e de grande humanismo, que não podemos deixar que seja desvalorizada,
caricaturada ou comparada com um homicídio. Consagrar na lei a despenalização
da morte assistida é consagrar o direito de todos a verem respeitada a sua
vontade, sem obrigar, mas também sem impedir seja quem for de encurtar a sua
vida, para por termo a um sofrimento que considere inútil e desumano. Despenalizar
é colocar a tolerância onde até hoje tem estado a prepotência de alguns
impondo-se a todos os outros. No dia 29, é isso que está em causa”.
Não me lembro do dia em que te conheci, João.
Mas conheci-te e reconheci-te. Seremos muitas e muitos a
continuar as tuas lutas, tomando partido, dialogando, exigindo seriedade,
inscrevendo o teu nome nas vitórias.
Talvez seja isso a ressurreição, como tão bem me disse
aquele teu amigo.
Isabel Moreira in expresso.sapo.pt – 21/7/2018