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23.8.25

OPINIÃO: Invisíveis e esquecidos

 


A morte de seis idosos na sequência de um incêndio no lar onde residiam, em Mirandela, é um trágico acidente cujos contornos, e eventuais responsabilidades, ainda vão ser apurados pelas investigações em curso da PJ e da Segurança Social. O alarme de fumo não terá disparado, quando o fogo deflagrou a partir de um curto-circuito num colchão antiescaras na madrugada de sábado, e há dúvidas quanto ao cumprimento do plano de segurança e se o número de funcionários era suficiente para os quase 90 utentes. Porém, convém sublinhar, o Lar do Bom Samaritano, propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Mirandela, estava licenciado e aparentemente cumpria os requisitos legais para funcionar.

A realidade das estruturas residenciais para idosos - é essa a designação pomposa das instituições que acolhem dia e noite os mais velhos - é desoladora. Ao longo dos últimos cinco anos, as inspeções da Segurança Social (SS) detetaram mais de 1600 instituições a funcionar à margem da lei, sendo que 500 receberam ordem de fecho imediato - o que coloca Portugal na cauda da Europa nesta matéria. Com um quadro de apenas 50 inspetores, a SS só atua quando há denúncias, o que significa que a real dimensão da ilicitude é desconhecida. Mas não sejamos hipócritas: os lares ilegais proliferam como cogumelos porque a oferta é claramente insuficiente - há cerca de 2700 residências seniores com 105 mil camas que estão quase sempre preenchidas - e os preços são proibitivos para a maioria dos reformados e respetivas famílias. Ninguém quer deixar o pai ou a mãe num estabelecimento sem licença, mas são poucos os que conseguem pagar uma média de 1500 euros por um quarto, segundo um estudo recente sobre o setor. Somos um país altamente envelhecido (mais de 2,5 milhões acima de 65 anos) e empobrecido (um milhão e meio recebem 450 euros de pensão) - a falta de respostas para os idosos aflige quase todas as famílias, mas o problema permanece socialmente invisível e politicamente esquecido.

·         Helena Norte - 19 de agosto, 2025 

27.7.25

OPINIÃO: Namoro sem exclusividade


A única certeza que se pode ter na política é que tudo e o seu contrário podem ser verdade. Depende apenas do momento eleitoral. Desde que Paulo Portas revogou a “irrevogável” decisão de se demitir de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, em 2013, e continuou no Governo liderado por Pedro Passos Coelho que se sabe que as palavras dos políticos são pouco mais do que isso mesmo: palavras que, como o povo sabiamente apregoa, são levadas pelo vento. No espaço de um ano, Luís Montenegro deixou cair o “não é não” relativamente ao Chega e é público e notório o namoro, embora o primeiro-ministro não assuma a exclusividade. Para já, pelo menos.

Na legislatura passada, PS e Chega protagonizaram algumas coligações negativas para fazer passar leis que o Governo AD, sem respaldo parlamentar, não conseguiu impor. Depois de as últimas eleições elevarem o Chega a segunda força na Assembleia da República e ditarem a hecatombe socialista, o PSD mudou de estratégia e virou-se para a extrema-direita. E nada podia aproximar mais os dois partidos do que o tema-fetiche do Chega: a imigração. Foi o próprio Ventura a anunciar o princípio de entendimento para viabilizar a nova lei de estrangeiros, o que aconteceu na semana passada. O primeiro-ministro prefere, contudo, insistir numa estratégia de negação e deixar que a confusão se instale. Primeiro, disse não saber a que acordo Ventura se referia, depois o seu ministro Carlos Eduardo Abreu Amorim confirmou o dito entendimento à revelia do chefe de Governo, ontem voltou a dizer que não tem parceiro preferencial ou exclusivo para o diálogo, mas considerou que o Chega está a manifestar “maior responsabilidade”. Sendo certo que em democracia os acordos são salutares e fundamentais, principalmente em cenários de minorias parlamentares, o que não é edificante para a vida pública é a falta de clareza deste namoro. Começa a parecer uma daquelas relações tóxicas que todos veem o que se está a passar, mas os próprios continuam a negar.

·         Helena Norte – Jornal de Notícias -22 julho, 2025

 

10.6.25

OPINIÃO: Um pacto para a habitação


António Costa prometeu 26 mil casas para famílias carenciadas até 2026. Depois veio Luís Montenegro e acrescentou 33 mil até 2030. Mas, até agora, nem duas mil foram entregues. Isto apesar dos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) no âmbito da habitação que estamos em risco de perder. Um falhanço tão grande que levou a Comissão Europeia a lançar sérios avisos a Portugal e a aconselhar medidas que, por cá, têm merecido forte oposição por estarem conotadas com uma certa Esquerda. Controlo das rendas, limitação do alojamento local (AL) nas zonas mais pressionadas e recurso a imóveis desocupados, públicos a privados, para a aumentar a oferta de casas disponíveis no mercado são algumas das recomendações feitas por Bruxelas, na semana passada, dias antes da tomada de posse do (pouco) novo Governo AD.

O diagnóstico não surpreende. O problema é estrutural, sistémico, e as soluções engendradas pelos últimos executivos foram meros paliativos num setor que é um negócio extremamente lucrativo para alguns e inacessível para uma larga maioria. A Comissão pede a Portugal uma nova estratégia com medidas de fundo com impacto a longo prazo para incentivar o mercado de venda e de arrendamento e propõe algumas medidas que constavam do pacote socialista Mais Habitação e que foram travadas pelo Executivo AD. José Luís Carneiro, o futuro líder do PS esmagado nas últimas legislativas, propôs a Montenegro pactos de regime em cinco áreas (política externa e europeia, defesa, segurança, justiça e organização do Estado). Se há matéria em que os dois partidos têm obrigação de chegar a um acordo para lá dos ciclos governativos é a habitação. De quem é a iniciativa pouco interessa.

·         Helena Norte – Jornal de Notícias - 10 junho, 2025

12.5.25

OPINIÃO: Manu era um dos bons

 

Manuel Gonçalves, Manu para os amigos e agora para o todo o país, tinha 19 anos e o sonho de ser polícia. Foi assassinado com várias facadas, à porta do Bar Académico, em Braga, faz hoje um mês. Manu não era um rufia, não terá provocado ninguém, não estaria à procura de problemas, mas acabou morto porque enfrentou um criminoso que se preparava para adulterar a bebida de uma rapariga com uma substância conhecida como “Boa-noite Cinderela”, usada para incapacitar e violar meninas e mulheres.

Depois de os pais de Manu terem pedido ao Ministério Público a abertura de inquérito para apuramento de eventuais responsabilidades criminais da Associação Académica da Universidade do Minho, a quem pertence o bar que estava concessionado, do gestor e de um segurança do espaço, é agora a vez da família da jovem avançar com uma ação contra o suspeito da tentativa de viciação da bebida e os responsáveis do bar.

Este trágico episódio deixa-nos duas importantes reflexões. A primeira é um alerta para os perigos que se escondem numa saudável noite de copos: a aparente facilidade com que se recorre a drogas que deixam as vítimas, mulheres principalmente, vulneráveis a crimes como violação e roubo. A segunda é uma nota de esperança. Vivemos num mundo extremado pelo individualismo em que a competição derrubou a cooperação e o oportunismo venceu a empatia. Num tempo em que as redes sociais são palco fácil para vedetismos tão instantâneos quanto fúteis. Estamos todos, enquanto sociedade, mais egoístas. Mas ainda há quem arrisque defender a pessoa do lado. Quem ouse levantar a voz para denunciar uma injustiça. Quem não tenha medo de fazer o que está certo. Manu morreu a defender uma colega de uma possível violação. Era um dos bons. Não estivesse a palavra gasta pelo mau uso, diria que um verdadeiro herói.

Helena Norte – Jornal de Notícias - 12 maio, 2025


1.5.25

OPINIÃO: SNS na ambulância


 “Há um ano atrás a Saúde estava pior do que está agora.” A afirmação é de Luís Montenegro, que acrescentou que atualmente “espera-se menos tempo para ter uma consulta e para ter uma cirurgia”. É irónico que o primeiro-ministro faça essa avaliação após uma semana em que três grávidas deram à luz em ambulâncias e quando falhou na promessa de reduzir o número de doentes sem médico de família e a espera para cirurgia.No domingo, um bebé nasceu na ambulância dos Bombeiros do Seixal antes de a mãe chegar ao Hospital de S. Francisco Xavier. Na terça-feira, uma mulher teve o filho numa viatura dos bombeiros em Alvalade do Sado, à porta do centro de saúde. Na quinta-feira, os bombeiros do Seixal voltaram a assistir uma grávida, que teve o filho dentro da ambulância enquanto aguardava referenciação. A estes casos soma-se o de outra parturiente que viu o filho nascer num corredor do hospital do Barreiro. No último ano, pelo menos cinco dezenas de bebés nasceram em ambulâncias, sem acesso a cuidados especializados, porque os serviços de obstetrícia estão encerrados e não raras vezes a referenciação falha e ninguém sabe para onde encaminhar uma mulher em trabalho de parto. Mas não é só a saúde materno-infantil que está a falhar. De fevereiro para março, mais 28 500 pessoas não tinham médico de família atribuído. No total, são 1 593 802 – um milhão e meio, um número recorde. O ano de 2024 terminou com mais de 1200 doentes oncológicos à espera de cirurgia para lá do tempo de resposta aceitável e 17 mil intervenções não oncológicas por agendar. Recorde-se que o Governo tinha prometido que, até ao fim do ano, estariam marcadas todas as cirurgias cujos tempos de resposta estivessem ultrapassados.

É verdade que Montenegro não está sozinho no falhanço. Antes dele, já Costa tinha gorado o compromisso de reduzir os doentes a descoberto. Mas dizer que a Saúde está melhor é insultar todos aqueles a quem o SNS continua a falhar.

·        Helena Norte – Jornal de Notícias - 28 abril, 2025

 

 

14.4.25

OPINIÃO: Homens que odeiam mulheres

 

Jorge L., militar do Exército, de 27 anos, violou uma mulher durante hora e meia com tal violência que ela teve de ser submetida a uma cirurgia, filmou o ato e partilhou a gravação num grupo privado de amigos no WhatsApp. Em primeira instância, foi condenado a sete anos e meio, em cúmulo jurídico, por violação e devassa da vida privada. Recorreu e três juízas do Tribunal da Relação de Coimbra baixaram agora a pena para sete anos de prisão, conforme o JN noticiou sábado. O crime de violação agravada tem uma moldura penal de dez anos, sublinhe-se.

Um videojogo, com o lema “torna-te o pior pesadelo das mulheres”, esteve disponível na maior plataforma de jogos do Mundo. Após forte polémica, a Zerat foi obrigada a retirá-lo com uma reação tão infame como o produto que promovia: pede desculpa a quem considera que “o jogo não devia ter sido criado”, mas apela a maior abertura “aos fetiches humanos que não prejudicam ninguém, mesmo que pareçam nojentos”.

Três influenciadores (dois menores) filmaram-se, em fevereiro, a violar uma rapariga de 16 anos em Loures. Antes de ser retirado, o vídeo que partilharam numa rede social teve 32 mil visualizações – ninguém denunciou o caso às autoridades. A vítima foi parar ao hospital e os agressores acabaram por ser detidos. O juiz libertou-os, não os colocou em centros educativos nem os proibiu de manter as contas nas redes sociais onde têm milhares de seguidores.

Estes três casos são demonstrativos não só da masculinidade tóxica – designação moderna para o eterno machismo – como da permissividade com que a sociedade em geral e, pior, o sistema judicial encaram a violência contra as mulheres. Numa altura em que as agressões sexuais aumentaram 10%, é imperativo dar sinais claros para travar esta epidemia. Temos de ser intolerantes com a violência de género e exigir penas pesadas para os homens que odeiam as mulheres.

·        Helena Norte – Jornal de Notícias - 13 abril, 2025

 



18.3.25

OPINIÃO: Sem casa, sem filhos


Ana Paula Santos, 38 anos, está internada para ter o quarto filho, mas por estes dias vive a maior angústia de uma mãe: está em risco de ficar sem o bebé. Não porque seja negligente ou haja suspeitas de que alguma vez tenha maltratado as outras três filhas, de 4, 9 e 18 anos. O problema de Ana Paula é que, embora trabalhe num lar de idosos, o salário mínimo que recebe não estica para pagar uma renda. Despejada da casa ilegal onde vivia, em Loures, e colocada num quarto de pensão, esta mãe é o rosto de um novo drama - o de quem arrisca perder os filhos porque não tem teto próprio.

A ameaça que pende como uma espada sobre centenas de famílias - recentemente denunciada por várias associações que lançaram um abaixo-assinado e que mereceu destaque na capa do JN do sábado passado - é resultado da crise da habitação que tem empurrado cada vez mais portugueses para uma realidade que julgávamos ultrapassada: barracas, tendas, anexos e todo o tipo de construções precárias a nascer como cogumelos nas periferias das cidades. A solução das autarquias tem sido avançar com programas selvagens de demolição destes bairros clandestinos e o despejo de centenas de famílias. Sendo certo que se trata de construções ilegais, é no mínimo questionável que as câmaras se apressem a derrubar essas casas sem garantir condições dignas de alojamento, como aliás é exigido na Lei de Bases da Habitação.

Além do aumento das pessoas em situação de sem abrigo (cerca de 13 mil) e guetizadas em barracos, há 600 mil em privação severa de habitação (sem quarto de banho, luz natural ou com infiltrações) e mais de 1,2 milhões a viver em espaços sobrelotados, sem condições de conforto ou privacidade. Por outro lado, havia 154 mil fogos desocupados em 2021, segundo o INE, o que mostra que a crise da habitação não reside apenas na falta de casas. É resultado do clamoroso falhanço dos sucessivos governos em garantir o direito a viver com dignidade.

·        * Helena Norte – Jornal de Notícias - 17 março, 2025

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3.1.25

OPINIÃO: Portuguesas de segunda

Os últimos dias do ano são propensos a balanços de todo o género. Alguns dedicam-se a contabilizar vitórias e insucessos, como se a vida se pudesse inscrever numa folha de Excel. Nas televisões, toda uma casta de comentadores afadiga-se a dar notas às figuras políticas. Hoje, nas páginas desta edição, publicamos as figuras que os nossos leitores elegeram, uma seleção tão subjetiva, e democrática, como todas as avaliações. Foram escolhidos dois homens - António Costa e Donald Trump -, num claro domínio da esfera política sobre o social. Mas, num ano de tantos escândalos sexuais, sobressai o nome de uma mulher, Gisèle Pelicot, a francesa que foi drogada e violada por mais de 50 homens angariados pelo próprio marido, e que conseguiu mudar definitivamente a vergonha de lado, libertando as vítimas de uma desonra que só devia pesar aos abusadores. No fim deste ano, é notícia que cerca de uma centena de mulheres açorianas tiveram de viajar até ao continente para interromper legalmente a gravidez no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isto porque dos 14 especialistas em ginecologia/obstetrícia nos três hospitais dos Açores, 11 declaram objeção de consciência à realização de aborto. Este facto, associado à necessidade de cumprir o prazo das dez semanas, obrigou as mulheres a viajar até ao continente para terem acesso a IVG, num claro atentado ao direito à privacidade que se impõe em qualquer cuidado de saúde, como se fosse um castigo ou uma desonra. Se não está em causa o direito dos médicos à objeção de consciência - haverá cerca de mil clínicos e enfermeiros que recusam tal prática, segundo dados da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde -, impõe-se que o SNS assegure nas melhores condições o acesso das mulheres a outro direito também consagrado na lei. Numa altura em que a IVG aumentou pelo segundo ano consecutivo (mais de 17 mil casos em 2023), é altura de avaliar o que está a falhar nos cuidados de saúde primários/planeamento familiar e tomar medidas para que deixe de haver portuguesas de segunda. • Helena Norte – Jornal de Notícias -31 dezembro, 2024

6.8.24

OPINIÃO: 37 que são 120 milhões

 
Os Jogos Olímpicos (JO) são geralmente notícia pelas medalhas (ou a sua escassez) ou pelas polémicas, mais ou menos estéreis, que se esfumam rápida e inconsequentemente. Como a alegada paródia à última ceia de Jesus (que afinal era uma recriação da mitologia grega com Dionísio), as acusações de que a pugilista Imane Khelif é trans (quando nasceu e sempre viveu como mulher, ainda que tenha níveis de testosterona elevados) ou as suspeitas sobre o tempo conseguido pelo nadador chinês Pan Zhanle, que retirou 40 centésimos de segundo ao anterior recorde mundial também fixado por ele. Certamente alheia a controvérsias balofas, a pugilista Cindy Ngamba fez história ontem, ao garantir a primeira medalha para a Equipa dos Refugiados Olímpicos. Nascida nos Camarões há 25 anos, vive no Reino Unido e integra a equipa de 37 atletas refugiados que estão a competir em 12 modalidades.
A comitiva deste ano é liderada por Masomah Ali Zada, que despertou a ira do regime afegão por andar de bicicleta, a ponto de ser apedrejada quando pedalava nas ruas de Cabul. Fugiu para França, onde estuda engenharia e cumpre o sonho de praticar ciclismo de alta competição. Outra das estrelas desta equipa é o queniano Dominic Lobalu, muitas vezes comparado com o somali tetracampeão olímpico Mo Farah, que foi a sua inspiração para se entregar ao atletismo. O atual campeão europeu dos dez mil metros vai correr os cinco mil metros e quer conquistar uma medalha olímpica.
É a terceira vez que o JO acolhem desportistas de elite que tiveram de fugir dos seus países, dignificando a tradição olímpica de cultivar a paz e a amizade entre os povos. “Permite-nos chamar a atenção e compreender a realidade global de que 120 milhões de pessoas, ou uma em cada 69 pessoas em todo o Mundo, foram forçadas a fugir das suas casas”, justifica Jojo Ferris, diretora da Fundação Refúgio Olímpico.
A medalha de Cindy Ngamba é a primeira da equipa, mas é muito mais do que isso. Porque os 37 atletas em competição representam os 120 milhões de vidas invisíveis que o Mundo quer esquecer.
Helena Norte – Jornal de Notícias - 05 agosto, 2024

22.7.24

OPINIÃO: O castigo aos meninos RSI

Nos Açores, as crianças cujos pais estão desempregados ou a auferir de apoios sociais vão ser discriminadas no acesso a creches gratuitas. A ideia foi do Chega, o que já nem surpreende. O que choca é que a iniciativa tenha sido aprovada pela maioria de Direita: além do partido de Ventura, a coligação de Governo (PSD, CDS-PP e PPM) liderada por José Manuel Bolieiro também votou favoravelmente (à exceção de dois deputados, um social-democrata e outro popular, que abandonaram o plenário antes da votação) e a IL absteve-se.
O argumentário do Chega não é novo: é preciso atacar os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI). E como? Castigando os filhos. “Os meninos do RSI ocupam as creches enquanto os pais vão para o café, para o supermercado, para onde quiserem”, acusou o deputado José Pacheco no debate inflamado na Assembleia Regional . Atente-se aos rótulos preconceituosos: os “meninos RSI” (como se a condição dos pais, seja ela qual for, deva ser fator de estigma) que “ocupam” as creches, como se de um crime se tratasse. Como se fossem menos do que os outros meninos. Como se a educação fosse um privilégio de alguns e não um direito de todos.
Propaganda à parte, o que este “projeto-piloto”, como Bolieiro lhe chamou, visa, de facto, é esconder a realidade do arquipélago: a falta de lugares na rede pública de creches - responsabilidade do Governo Regional. E é muito mais fácil limitar o acesso com medidas segregacionistas do que criar condições efetivas para que todas as crianças, independentemente das origens, tenham direito à educação.
Para entrar em vigor, a resolução que altera as regras de admissão nas creches públicas terá de ter força de lei. O BE já anunciou que vai enviar a matéria ao representante da República nos Açores e espera que haja um veto ou um pedido de fiscalização preventiva ao diploma. Ou Bolieiro pode recuar e tentar salvar a face num caso que o devia envergonhar.
* Helena Norte - Jornal de Notícias - 22 julho, 2024 


18.6.24

OPINIÃO: A normalização da devassa

Os números até podem parecer pouco expressivos, mas são suficientemente graves para merecer preocupação: 13% dos jovens portugueses já sofreram com a partilha de fotografias ou vídeos íntimos, 15% gostam de divulgar tais conteúdos e 18% enviam mensagens de teor sexual a outras pessoas no meio digital. O projeto de investigação MyGender - Práticas de Jovens Adultos Mediados, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que inquiriu 1500 jovens entre os 18 e os 30 anos, concluiu ainda que as publicações nas redes sociais são um foco de ansiedade para muitos, com o assédio e o elogio a sucederem-se rapidamente.
Não admira, por isso, que a ameaça, chantagem e divulgação de imagens íntimas (“revenge porn” ou “sextortion” ), muitas vezes em contextos de rutura relacional, estejam a aumentar, embora os números oficiais sejam apenas a ponta do iceberg. Muitas vítimas preferem não lidar com a vergonha e a culpa que muitas vezes lhes são socialmente imputadas e não apresentam queixa, perpetuando a impunidade de quem pratica estes crimes. Os resultados da investigação revelam que a exposição dos nativos digitais surge cada vez mais cedo e que 28% seguem pessoas que partilham a sua vida íntima no digital.
Embora o exibicionismo e o voyeurismo sejam seguramente tão antigos como a Humanidade, as redes sociais abriram uma janela de oportunidade a todos os aspirantes a narcisos e a exposição online, voluntária ou forçada, do que deveria ser do foro privado é cada vez mais vulgar. Já ninguém estranha ouvir as conversas alheias em alta voz ou durante ruidosas videochamadas nos transportes públicos, em cafés ou em qualquer outro espaço aberto. Já não surpreende seguir a vida dos outros como se fosse uma telenovela. A exposição substituiu a discrição, a partilha aniquilou a privacidade. E não só entre os mais jovens. Há demasiados adultos a exibirem inconsciente e irresponsavelmente a sua vida e a dos seus filhos menores. A devassa parece estar normalizada.
* Helena Norte - Jornal de Notícias - 18 junho, 2024 


6.6.24

OPINIÃO: Sem eles, Portugal pára

O Governo quer apertar as regras para viver e trabalhar em Portugal. Do Plano de Ação para as Migrações apresentado ontem por Luís Montenegro constam medidas como o fim do regime excecional que permitia a um estrangeiro entrar em Portugal com visto de turista e só depois pedir autorização de residência e a criação de uma estrutura de missão para regularizar os cerca de 400 mil processos pendentes na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
Em plena campanha eleitoral para as europeias, em que o tema das migrações tem sido dominante apesar de não fazer parte do top das preocupações dos portugueses, e numa altura em que ganha força a narrativa que associa os estrangeiros ao aumento da criminalidade, importa olhar para o assunto numa perspetiva social e económica e com a objetividade dos números. No ano passado, trabalhavam em Portugal quase meio milhão de estrangeiros, que representam 13,4% do total (em 2014 eram 55 mil). Os números são do Banco de Portugal, com base nos registos da Segurança Social, e revelam que uma em cada cinco empresas tem funcionários oriundos de outros países. Em dez concelhos - a maioria no Sul mas Cinfães está nesse lote -, os estrangeiros representam um terço da força de trabalho. Na pesca e na agricultura, são um quarto dos efetivos. Mas a verdade é que estão em todo o lado, principalmente nos empregos que os portugueses não querem.
Não espantará ninguém que os imigrantes ganhem bastante menos do que a média dos portugueses - 760 euros/mês os mais jovens e 781 euros os maiores de 35 anos, enquanto os nacionais auferem, em média, 902 e 945 euros -, mas há um dado do BdP que surpreenderá os mais distraídos: os estrangeiros têm mais qualificações do que os trabalhadores portugueses. E por fim outro número para desmontar o discurso da alegada carga que representam para o país: os estrangeiros contribuíram com 1861 milhões de euros para a Segurança Social e beneficiaram de apenas 257 milhões de euros em prestações.
Não há dúvida de que regularizar a imigração é uma urgência, até para dignificar as milhares de pessoas que legitimamente querem trabalhar cá. Mas é preciso não esquecer que sem os estrangeiros Portugal pára.
* Helena Norte - Jornal de Notícias -04 junho, 2024


15.2.24

OPINIÃO: Morrer de mãos dadas

Juntos há 70 anos, Dries e Eugenie van Agt morreram de mãos dadas. Tinham ambos 93 anos. Ele foi primeiro-ministro dos Países Baixos e sofreu uma hemorragia cerebral em 2019, da qual nunca recuperou. Ela também estava irreversivelmente doente. Decidiram morrer juntos num país onde a eutanásia e a morte medicamente assistida estão legalizadas desde 2002. A notícia da morte foi avançada pelo The Rights Forum, uma organização de defesa dos direitos da Palestina fundada pelo democrata-cristão: “Ele morreu junto e de mãos dadas com a sua amada esposa Eugenie van Agt-Krekelberg, o apoio e suporte que esteve com ele mais de 70 anos, e que ele sempre tratou como a ‘minha miúda’”. Ambos estavam muito debilitados, mas não podiam viver um sem o outro. A eutanásia de casais é muito rara - algumas dezenas de casos naquele país - porque a lei obriga a que ambos preencham seis condições para aceder ao alívio da morte.
Do outro lado do Atlântico, no Canadá, a discussão é mais radical - e perigosa. O Parlamento debateu, mas acabou por voltar a adiar, uma lei que permitiria o acesso à morte assistida de pessoas que sofram apenas de doenças do foro mental, deixando de exigir um diagnóstico de doença irreversível e/ou terminal.
Em Portugal, o Parlamento já produziu uma legislação equilibrada sobre a morte medicamente assistida, mas quem se encontra “em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável” continua a não ter direito a uma morte digna. Depois de um longo e conturbado processo - a lei foi aprovada quatro vezes depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter enviado o primeiro decreto para o Tribunal Constitucional, em fevereiro de 2021, vetado o segundo, em novembro do mesmo ano, e enviado o terceiro também para fiscalização preventiva, em janeiro de 2023 -, a eutanásia foi promulgada em maio passado. Mas a queda de António Costa atirou a regulamentação para as mãos do próximo Governo. Não sendo tema de campanha eleitoral, embora sejam conhecidas as posições dos vários partidos, resta esperar que não morra na praia.
* Helena Norte in Jornal de Notícias -14 fevereiro 2024 


2.11.23

OPINIÃO: É preciso morrer alguém?

O novembro “dramático”, como antecipou o diretor-executivo do SNS, está à porta e não há soluções para os problemas na saúde. As negociações, que decorrem há mais de um ano entre o Governo e os sindicatos médicos, avançaram na semana passada, com a apresentação de propostas dos dois lados, criando a legítima expectativa por parte da população de que o acordo estaria à vista, mas ainda não está fechado. E é cada vez mais evidente que um eventual acerto entre as partes pode não ser suficiente para resolver os problemas estruturais que se acumulam.
António Costa disse sábado, na Comissão Política do PS, que o “SNS não é slogan” e que a reforma em curso visa proteger o seu futuro. Mas não há SNS, nem futuro, sem as pessoas que lá trabalham todos os dias. E os sinais de desgaste em várias classes profissionais são demasiado evidentes. A rápida expansão do movimento Médicos em Luta, que mobilizou a recusa às horas extra e conta já com cerca de quatro mil profissionais, mais do que um sintoma da insatisfação da classe é uma nova realidade que pode baralhar as dinâmicas negociais. Porque não estando sujeito a qualquer tutela sindical, pode desafiar eventuais acordos que venham a ser conseguidos. 
A responsabilidade pelo impasse nas negociações até pode ser partilhada, mas é ao Governo que compete assegurar condições para o SNS funcionar e garantir que os portugueses têm efetivamente direito à saúde. E isso não está a acontecer. Há serviços hospitalares a colapsar, urgências fechadas ou sem todas as especialidades necessárias para acudir à população. Mais de 1,6 milhões de utentes não têm médico de família. As imagens de idosos a passar a noite à porta do centro de saúde na tentativa de arranjar uma consulta é degradante. Pessoas de baixos recursos estão a fazer seguros porque têm pânico de adoecer e não terem assistência, como alertou, em entrevista ao JN, Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde socialista. É o SNS em mínimos históricos. Envergonha-nos a todos.
Perante isto tudo, Costa insiste nas contas certas e amealha o excedente. Ele, que viu cair Marta Temido - a ministra da Saúde que resistiu a uma pandemia, mas se demitiu na sequência da morte de uma grávida por falta de assistência no Santa Maria -, está à espera de quê para resolver esta crise? Será preciso morrer (mais) alguém? 
* Helena Norte - Jornal de Notícias -30 outubro, 2023

7.8.23

OPINIÃO: O silêncio e os inocentes

Foi o que se esperava. Um espetáculo de dimensão global, a chegada de Francisco a Lisboa. O apelo à paz, a crítica à eutanásia, o convite à prática do bem. Os políticos e o povo. A tudo isso assistimos nas emissões especiais dos média. Mas, eventualmente, o momento mais importante da visita papal a Portugal no âmbito da Jornada Mundial da Juventude não passou nos diretos: o encontro privado com algumas das quase cinco mil vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja portuguesa. O que fica deste primeiro dia é a exortação do Papa à Igreja: é preciso ouvir o grito das vítimas.
Antes, Francisco falou de necessidade de estabelecer “rotas corajosas para a paz”, criticou as “leis sofisticadas da eutanásia” e desafiou os jovens a realizarem os “sonhos de bem”. Parafraseou Amália para dizer que “Lisboa tem cheiro de flores e de mar”, citou Camões e Sophia para falar do mar português, Pessoa para enfatizar que o que é “preciso é criar” e até Saramago para concluir que “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca”. Próximo, quebrou o protocolo para abençoar bebés, foi humano e caloroso - tudo o que se esperava deste Papa.
Nas suas deslocações, Francisco não deve ter visto os cartazes a lembrar os mais de 4800 menores violentados por membros da Igreja. Mas ele que obrigou as dioceses a criarem comissões para denúncia e impôs uma política de tolerância zero não precisa que lhe recordem a vergonha dos crimes sexuais praticados na Igreja. E na oração das vésperas, numa cerimónia que reuniu a cúpula do clero nos Jerónimos, Francisco apontou aos “escândalos” que desfiguram o rosto da instituição e que exigem “uma purificação humilde e constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar”. Acolher e escutar, pede o Papa à Igreja portuguesa, a mesma que encobriu e desvalorizou durante décadas os crimes praticados por todo o país e que, mesmo perante centenas de relatos credíveis, se recusa a pagar indemnizações às vítimas - só mesmo se for obrigada pelos tribunais - e que não quis o memorial de reconciliação na JMJ.
Francisco, líder máximo de uma instituição perpetuada por rituais, códigos e cânones, sabe bem da importância do simbólico e da necessidade de atos redentores. E no primeiro dia desta Jornada deu um sinal inequívoco de que exige à Igreja que jamais volte a calar os pecados praticados pelos que se auguram ser representantes de Deus na Terra. Para que o grito dos inocentes não volte a ser silenciado.
* Helena Norte - Jornal de Notícias -03 agosto 2023 

21.5.23

OPINIÃO: Crime ou pecado?

Um recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) considera, pela primeira vez, que lucrar com a prostituição (crime de lenocínio), desde que esta seja exercida livremente, sem violência ou coação, não deve ser crime.
O tema é polémico, há várias decisões de primeira instância no sentido de não condenar o proxenetismo e até já dividiu os juízes, mas só agora houve maioria no Palácio Ratton quanto à inconstitucionalidade do crime de lenocínio. O Ministério Público já recorreu e pede que o TC se pronuncie a título definitivo. Se a nível jurídico não há consenso, a nível social muito menos, até porque toca noutro tema fraturante: a prostituição não sendo ilegal (desde 1983), também não existe enquanto profissão regulamentada.
Há vários países onde o trabalho na indústria do sexo - inclui prostituição, pornografia, striptease, linhas eróticas ou serviços semelhantes - está enquadrado do ponto vista legal e fiscal, com os mesmos direitos e deveres do que qualquer outra atividade. Todavia, a simples definição de trabalho causa polémica em Portugal: para os opositores da legalização - como algumas associações feministas, a CGTP e a UGT -, a prostituição é sempre uma forma de violência e de exploração, em especial da mulher, pelo que não se pode falar de trabalho. E argumentam que a legalização só iria beneficiar proxenetas e traficantes de seres humanos e promover o turismo sexual.
Ou seja, quem está contra a legalização argumenta que teria o mesmo efeito prático do que a proibição...
Para a Rede Sobre Trabalho Sexual, o reconhecimento social e jurídico do trabalho sexual contribuiria para a dignificação de quem o exerce, a melhoria das condições laborais e de segurança, reduziria os riscos para a saúde e diminuiria a discriminação e a exclusão social.
Um estudo da Universidade do Minho, divulgado em 2021, conclui que o atual paradigma é ineficaz , não protege os mais vulneráveis, e critica que o legislador confunda quem pratica prostituição com vítimas de exploração sexual.
Que o debate jurídico está claramente minado pela moralidade é assumido pelo antigo presidente do TC. Numa nota a propósito de um acórdão de novembro de 2016 em que votou vencido, Costa Andrade dizia que considerar o lenocínio simples (sem violência) crime é colocar o direito penal ao serviço da "prevenção ou repressão do pecado", num exercício de moralismo atávico" incompatível com o "Estado de direito da sociedade secularizada e democratizada dos nossos dias".
* Helena Norte - Jornal de Notícias - 15.5.2023

26.12.22

OPINIÃO: Emojis secretos, cortes e lágrimas

Há uma linguagem secreta dos emojis que os adolescentes usam para comunicar sobre temas tabu.
O alerta foi lançado esta semana pelas autoridades britânicas, que divulgaram uma lista com o significado oculto de ícones aparentemente inofensivos usados em conversas sobre drogas e sexo. Uma folha ou um cacho de uvas pode ser sinónimo de haxixe, um nariz pode representar cocaína e um extraterrestre pode ser ecstasy.
Não se sabe se, por cá, os jovens também recorrem a códigos para falar de sexo e drogas, mas há indicadores que devem preocupar os educadores. Esta semana, foram conhecidos dados que revelam que 60% dos portugueses com 18 anos jogam online e 20% fazem apostas a dinheiro. Um inquérito do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, que envolveu mais de 70 mil jovens, conclui ainda que seis em cada dez passam mais de quatro horas por dia em atividades online.
Recentemente, outro estudo da Organização Mundial de Saúde revelou que os adolescentes portugueses entre os 11 e os 15 anos estão infelizes, tristes, nervosos, irritados, pouco satisfeitos com a vida - com a pandemia a agravar vários indicadores. Mais preocupante: um em cada quatro já se feriu de propósito pelo menos uma vez, provocando cortes, queimaduras ou outro tipo de lesões.
A adolescência é, na maioria dos casos, um período de saudável descoberta e de exploração dos limites de que saímos geralmente incólumes. Mas nem sempre é assim. E os sinais de alerta - isolamento familiar e social, alteração de padrões de alimentação e sono, mudanças de humor, maior irritabilidade ou cansaço, quebra no rendimento escolar, entre outros - nem sempre são devidamente valorizados.
Não, não se sugere uma atitude de desconfiança ou qualquer investigação aos telemóveis dos filhos. Conversar sobre temas íntimos e fraturantes é exigente em qualquer idade, conseguir que um adolescente partilhe o que sente pode ser mais difícil do que abrir uma ostra. Mas é possível iniciar uma conversa franca, partilhar preocupações e medos, ouvir sem julgar, compreender e estabelecer limites saudáveis. Um desafio para estes dias em que passamos mais tempo em família.
* Helena Norte in Jornal de Notícias - 26.12.2022