3.1.25
OPINIÃO: Portuguesas de segunda
Os últimos dias do ano são propensos a balanços de todo o género. Alguns dedicam-se a contabilizar vitórias e insucessos, como se a vida se pudesse inscrever numa folha de Excel. Nas televisões, toda uma casta de comentadores afadiga-se a dar notas às figuras políticas. Hoje, nas páginas desta edição, publicamos as figuras que os nossos leitores elegeram, uma seleção tão subjetiva, e democrática, como todas as avaliações. Foram escolhidos dois homens - António Costa e Donald Trump -, num claro domínio da esfera política sobre o social. Mas, num ano de tantos escândalos sexuais, sobressai o nome de uma mulher, Gisèle Pelicot, a francesa que foi drogada e violada por mais de 50 homens angariados pelo próprio marido, e que conseguiu mudar definitivamente a vergonha de lado, libertando as vítimas de uma desonra que só devia pesar aos abusadores.
No fim deste ano, é notícia que cerca de uma centena de mulheres açorianas tiveram de viajar até ao continente para interromper legalmente a gravidez no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isto porque dos 14 especialistas em ginecologia/obstetrícia nos três hospitais dos Açores, 11 declaram objeção de consciência à realização de aborto. Este facto, associado à necessidade de cumprir o prazo das dez semanas, obrigou as mulheres a viajar até ao continente para terem acesso a IVG, num claro atentado ao direito à privacidade que se impõe em qualquer cuidado de saúde, como se fosse um castigo ou uma desonra.
Se não está em causa o direito dos médicos à objeção de consciência - haverá cerca de mil clínicos e enfermeiros que recusam tal prática, segundo dados da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde -, impõe-se que o SNS assegure nas melhores condições o acesso das mulheres a outro direito também consagrado na lei. Numa altura em que a IVG aumentou pelo segundo ano consecutivo (mais de 17 mil casos em 2023), é altura de avaliar o que está a falhar nos cuidados de saúde primários/planeamento familiar e tomar medidas para que deixe de haver portuguesas de segunda.
• Helena Norte – Jornal de Notícias -31 dezembro, 2024