28.1.25
TEXTOS DE AUTORES NISENSES - " O mar enrola na areia" - Álvaro Pires *
Tenho uma vaga ideia daquela pessoa. Era uma figura de estatura baixa, mal vestida e de roupa sempre suja. Os bolsos esquerdo e direito das calças eram sempre volumosos - andavam cheios de pedras - apresentando ainda entre as pernas um outro volume, ou porque as calças com o peso das pedras desciam muito abaixo da cintura, ou porque com a idade os seus órgãos genitais já estavam descaídos, ou em última hipótese, os alfaiates entendiam que aquele corte de calças seria o mais indicado para aquela época.
“Olha para aqueles velhos ali sentados! - Coitados já têm todos tomates à “Ti António Virtoso”, tudo ali pendurado…”
Costumava eu comentar há uns anos atrás, porque agora quando me dispo e me miro de cima para baixo, murmuro com alguma tristeza: “estás mesmo a ficar como o outro!”
Não era uma figura que transmitisse repugnância, mas talvez um pouco de medo aos mais novos, pelo seu aspecto. Lembro-me que falava muito, mas só para ele e gesticulava ainda mais, palavras essas, ou gestos que só ele entendia. Parece que o estou a ver na tapada do meu tio ”Zé Polícia”, com os bolsos cheios de pedras, as duas mãos também com pedras e a demarcar com elas as lindas da terra do meu tio, falando e gesticulando muito, como se estivesse zangado com alguém.
Ouvia-se dizer que ele também cantarolava uma cantiga (sempre a mesma), após demarcar as lindas com as suas pedras, provavelmente contente por ter delimitado mais uma tapada e porventura ter resolvido mais uma querela, entre familiares ou outros (na sua cabeça).
Na minha memória ficou - certo ou errado – que era um lavrador remediado e ajuizado duma aldeia do outro lado da Ribeira de Nisa (Chão da Velha, Velada, Cacheiro?). Constava que em noites de Lua Cheia avariava: esquecia-se dos seus afazeres, e calcorreava as aldeias vizinhas a demarcar as lindas das terras – dos outros - com as suas pedras. Com a passagem da Lua para a fase seguinte, voltava à sua família e ao seu trabalho.
Quando à noite olho para o céu e vejo a Lua Cheia, tenho inveja do “Ti António Virtoso” e dá-me gana de encher os bolsos de pedras e meter-me por esses caminhos fora, falando sozinho (e para a Lua) e voltar a casa sem ninguém me perguntar por onde andei e o que andei fazendo ou não fazendo!
Era o meu primo adolescente e estava a dar os primeiros passos no mundo do trabalho. Pessoa tímida, nunca tinha saído da aldeia a não ser para trabalhar noutras aldeias, ainda mais aldeias que a sua. Como nos outros dias (ou noites), levantou-se ainda de noite para se ir encontrar com o mestre pedreiro na barragem da Velada, para daí partirem para o local de trabalho.
Por respeito ao mestre chegava sempre primeiro que ele, e ali ficava sentado à sua espera. Muitas das vezes, ainda mais de noite que de dia, tiritando de frio, mas sempre no local combinado: sentado numa parede à beira do caminho. À sua volta as serras, o barulho da água a entrar e a sair das turbinas da barragem, um ou outro bicho a acordar ou a preparar-se para ir dormir. Enfim as leis da natureza!
Como muita gente da aldeia sempre teve muito medo - dos medos - mas lá ia arranjando coragem para os superar. Numa dessas manhãs, onde tudo o que mexia ou estava parado eram vultos que inspiravam respeito, viu aproximar-se alguém, que concluiu de imediato, que não era o seu mestre. Quem se aproximava era mais baixo, andava mais rápido e vinha cantarolando e o seu mestre por respeito para com o aprendiz, ou porque não tinha queda para cantar nunca cantava.
Portanto quem se aproximava era outra pessoa e ficou apreensivo, (ou mesmo com medo) porque por ali quase ninguém passava, muito menos àquela hora.
O vulto em causa foi-se agigantando e ele quase se enfiava por debaixo da capa da parede onde costumava estar sentado à espera do mestre. O vulto – já pessoa - estancou de repente e perguntou:
- Você dança?
E sem esperar pela resposta a pessoa agarrou-se a ele com unhas e dentes e toca de dançar, enquanto cantava a plenos pulmões: “O mar enrola na areia…”
O meu primo tentou-se esquivar, mas o “Ti António Virtoso” ainda o puxou com mais força e determinação, e continuou: “...ninguém sabe o que ele diz...”
E pergunto eu: o mar ou o “ti António Virtoso”?
Olhão, 30 de Dezembro de 2009
*Escritor Santanense